Mônica

Silhueta de jovem mulher, com o coração incandescendo no peito, atrás dela o senado federal brasileiro em uma noite tempestuosa.

Sinopse do livro: Em pleno regime militar brasileiro, Mônica Alencar Deveraux, jovem inteligente e doce, é presa injustamente e torturada. Prestes a morrer, é transformada pelo Povo Antigo (sonhos e pesadelos que ainda vivem em florestas e vales esquecidos, e mesmo aqui, nos escuros interstícios da cidade) em uma poderosa Criatura da Escuridão, extensão da própria Escuridão neste mundo. Hoje, agente federal e uma arma estratégica no jogo dos poderes políticos, Mônica descobre a Amizade e o Amor, mas vê a si mesma como um monstro, apesar desta poderosa brasileira ser tão bela e sedutora. Ela deve se permitir Amar?

“Fiquei completamente hipnotizado pelo trecho que li no site do autor! (O livro Mônica é) Sexy, sombrio, inebriante, instigante, avassalador!”

Gustavo Henrique, Leitura Virtual.

“Uma história diferente que me prendeu a atenção desde o primeiro capitulo.”

Nuza Batemarque, Eu Amo Leitura.

“Thriller político histórico e Terror! Isso que é ficção, (o livro Mônica) nos faz pensar que é exatamente o que o governo está fazendo!”

SakuraUchiha, Avaliadora TOP 50 da Amazon.

Deguste meu livro “Mônica”:

— Merda! Merda, Mônica, por que fez aquilo?

A jovem mulher abriu os grandes, belos e expressivos olhos castanho-escuros, que a um momento estavam quase fechados, e sorriu francamente, ar de moleca zombeteira, colocando o indicador no lábio inferior e fazendo trejeito de geniazinha de antigo seriado de TV, enquanto pensava por um momento e então dizia, faceira:

— Impulso! Compulsão! — Mas o que ela queria mesmo com o sorriso brejeiro era que ele visse bem seus caninos, e encarasse a verdadeira natureza dela. Dane-se se ele sentia nojo, ela era o que ela era, e pronto. Aquele crápula arrogante haveria de engolir tudo o que Mônica significava, quisesse ou não.

O Agente Investigador Eduardo Araújo Weltman olhou para ela com desprezo, que ela devolveu acrescido de deboche e ironia, olhando-o de lado e dizendo para ele:

— Eu fiz meu trabalho, Edy. E você, pode dizer que fez o seu?

—  Monstro… — Disse ele, entre dentes.

— Então o que vai fazer lá dentro diante da Comissão? Se fosse me crucificar, teria trazido consigo a gravação. Cadê a gravação?

Ele estreitou os olhos, e respirou profundamente, lentamente. Era um homem charmoso, de traços fortes e masculinos, temperado por um sutil ar sensual de atrevimento, e tinha o que as mulheres chamavam de um belo sorriso, e onde as mais atentas viam uma boca carnuda, convidativa. A cereja do bolo, segundo Mônica, era que Weltman era, no fundo, tímido.

Naquele momento, no entanto, ele estava sério, carrancudo. Parecia tentar dizer algo que não conseguia expressar. Ficaram se encarando, a meio metro um do outro, sentados na luxuosa antessala da Comissão. Ambos agentes, ambos cientes que seriam interrogados acerca de uma missão que acabou em um banho de sangue, e que isso talvez lhes custasse bem mais que as carreiras. Havia um clique-claque em algum lugar, de algum relógio fora de vista, e nada mais, apenas o silêncio. Mônica ameaçou dizer algo, mas Weltman se levantou e foi falando:

— Eu… Destruí o CD com a gravação. Mas fora isso, vou cumprir meu dever lá dentro. E pedir meu afastamento da DCOR (1) imediatamente. É através do DCOR que mantenho minha ligação com os Dragões Vermelhos.

Ela ficou olhando para ele por um momento, e não soube o que dizer. Não obstante sua aparência tão jovial, Mônica estava viva há sessenta e nove anos e, apesar disso, não sabia o que dizer enquanto ele afirmava que iria embora. Ficou então séria, não tinha vontade de sorrir, e deu de ombros. Se ele queria ir para o inferno, que fosse, disse com veemência para si mesma, na tentativa de se convencer que pensava de fato assim.

Então a ampla porta metálica da sala da Comissão se entreabriu, e um assistente pôs metade do corpo para fora. O jovem moço avaliou por um segundo a linda mulher sentada, cuja pele clara e os longos cabelos em tons castanhos profundos contrastavam sensualmente, e então olhou para o homem, dizendo:

— Agente Weltman? O senador Coriolano pede que o senhor entre primeiro.

Eduardo ajeitou a gravata de seu terno, e sem olhar para Mônica, fez um sinal impaciente para que o jovem auxiliar entrasse na frente, e entrou a seguir. Diante das costas largas do homem que iria enfrentar a temida Comissão agora, Mônica Alencar Deveraux deixou finalmente uma expressão triste tomar conta de seus grandes e belos olhos, e murmurou:

— Eu sei o que você vai fazer, seu idiota… Vai me salvar.

O depoimento a portas fechadas de Eduardo demorou cerca de duas horas. Então ele saiu, e passou por Mônica sem que trocassem uma palavra, mas mesmo sem olhar para trás, ela soube que ele havia parado no corredor e a olhava, as grossas sobrancelhas escuras vincadas de preocupação. Mônica sabia que era a agente mais destacada entre os Dragões, mas sabia também que era a mais controversa e a mais frágil diante da Comissão. Todos sabem que a Comissão tem ares de cordialidade e civilidade, mas que usa qualquer método para manter seus agentes na linha, e não raro julga pela morte dos agentes que acha perigosos para a instituição. E, sem a menor dúvida, Deveraux era a mais instável e perigosa peça atualmente em jogo.

— Boa noite, senhorita Deveraux. — Disse o senador Coriolano calmamente, enquanto retirava de uma pequena pasta alguns documentos, e um tablet, e os colocava sobre a mesa de ébano espelhado que estava a sua frente, entre ele e a aparentemente jovem agente. Ele não olhou para ela, que se sentava na cadeira solitária que ficava no centro do salão. Em frente a ela, feito juízes da vida ou da morte, os sete membros atuais da Comissão. Todos impassíveis, feito estacas afiadas apontadas para Mônica. Como a agente não respondesse, o senador ergueu o olhar aquilino, e repetiu com sua voz grave e soturna: — Boa noite, senhorita Deveraux…

— Boa noite. Aquilo ali no canto é um emissor laser?

— Sim, Deveraux. É uma solda laser industrial especialmente adaptada para emitir um único e intenso disparo, capaz de carbonizar você. A cerca de três metros em volta de sua cadeira há um campo invisível detector de movimentos. Se tentar se mover além deste perímetro, o laser vai mirar no seu corpo e disparar, tudo numa fração de segundo.

Mônica sorriu, sensual e fingindo-se divertida. Ela fitou o senador por debaixo de suas bem delineadas sobrancelhas, enquanto foi dizendo:

— Ah, mas para quê tudo isso? Eu sou apenas uma pobre menininha inocente. — E riu, um riso de menina mesmo. Pôde sentir os velhos se arrepiando de medo.

O senador desviou imediatamente os olhos dos de Mônica, e pigarreou incomodado, dizendo a seguir, ainda em seu tom monocórdio:

— Senhorita Deveraux, gostaríamos que nos fizesse um relato de suas atividades no desfecho da Operação Arani (2) onde a senhorita deveria apenas mandar um recado. — e ele frisou o termo, ela sabia, para que Deveraux lembrasse que eles possuíam o controle sobre a coleira dela. Seria uma coleira bem larga e folgada quando sua mãe, já bem idosa, e sua irmã, também muito velha, falecessem, pois talvez Mônica não ligasse tanto assim para filhos de sobrinhos. Talvez. A agente riu-se, com desprezo, e ele prosseguiu: — E acabou tomando para si a decisão sobre… Como deveria terminar aquela missão.

— Primeiro me diga o que Weltman disse.

— A senhorita veio aqui apenas responder…

— Senador. Eu vou lhe contar exatamente o que houve. Mas antes, olhe para mim…

Como Coriolano evitasse olhar para ela, Mônica respirou fundo, semicerrou os grandes olhos, concentrou-se em algo escuro dentro de si, e abriu a boca, falando com uma voz que era talvez a voz dos mortos, ou a voz inquietante do rumor assombrado de um oceano antigo, terrível e esquecido em algum recanto sombrio do Universo. Sua voz era um som apavorante, mas ao mesmo tempo hipnótico. Era um reverberar demoníaco, mas ao mesmo tempo belo, sua voz era tudo, menos humana, quando Mônica disse:

— Olhe para mim.

As gotas de suor começaram a brotar da testa do senador. Coriolano, o Coriolano Malvadeza ou o Sanguinário Gentil, como era chamado nos corredores do Senado, era um homem duro, firme e de grande poder, sua força de vontade era tremenda e notória, pois ele já fizera vergar presidentes, e mandara destruir mais vidas do que podia se recordar, ainda assim seu coração parecia querer rasgar o peito ao ouvir a terrível voz de comando daquela besta-fera em forma de mulher. Ele a odiava intensamente, nem sequer tentava esconder, mas como todos os outros da Comissão, devia saber que residia nela um trunfo de que não podiam dispor em seus planos para o futuro dos Dragões Vermelhos. Ela possuía um raro e genuíno dom sobrenatural. Até onde sabiam, nenhuma outra agência mundo afora possuía um ser como ela entre seus agentes.

— Olhe… Para… MIM.

Todos olharam para ela. Não havia um único par de olhos naquela sala e nas salas de vigilância, que monitoravam o lugar, que não tivesse se fixado na mulher alta, bonita e de aparência jovem e elegante, que estava sentada com sensual charme no meio da sala da Comissão. Mas por mais terrível e irresistível que fosse aquela voz horrenda e sedutora, Mônica não era onipotente, sua vontade não dominava completamente quem a ouvia, e vários guardas de segurança saíram das sombras nos cantos da sala, olhos vidrados nela, mas o instinto treinado os fazendo apontar diversos canos de fuzil direto para Deveraux. Coriolano, que olhava trêmulo de fúria bem diretamente para o olhar escarnecedor da agente, ergueu a mão, e os fuzis foram recolhidos, e ele, o senador, disse, num balbuciar quase selvagem:

— Weltman… Fez seu relatório… E disse que você não teve escolha senão entrar em conflito com todos, e que ele a ajudou a sair… E que você tentou ajudar a falecida agente Steiger, mas que os bandidos a esfaquearam… Figueiras está vivo e vai levar o aviso aos chefes dele… Agora, sua… Coisa… Diga como sobreviveu a tudo aquilo?

— Weltman pediu afastamento?

— Eu neguei.

— Sim… Sim… — Ela sorria — Na verdade o agente Weltman foi quem me conteve e me fez deixar Figueiras livre. Entenda, Coriolano, se me quer trabalhando para você, escreva no seu tablet aí, com suas mãozinhas nodosas, que Eduardo Araújo Weltman não é dispensável, ele…

— Como diabos você sobreviveu, porra?!!! — O grito salivante do senador foi tão súbito e violento, que Mônica se surpreendeu e calou-se, mas manteve o ar de zombaria que quarenta anos de treino lhe ensinaram a pôr no rosto quando queria se proteger do mundo. O senador tinha os olhos injetados e uma tal fúria que ela poderia jurar que ele também era, ou deveria ser um filho das trevas. Foi então que ela entendeu. Mônica olhou para ele longamente, enquanto Coriolano Malvadeza se recompunha e tomava das mãos de uma secretária um lenço e um copo de água. Em poucos momentos ele era novamente um homem elegante e sério, um político de carreira que se reelegeria vezes seguidas apoiado em seu carismático e paternal semblante e nas falcatruas políticas que sabia fazer como ninguém. Mas Mônica sabia muito bem o que ele desejava, e disse:

— Senador… Percebi algo muito interessante a seu respeito, e vou lhe contar. Você acha que eu sobrevivi aos tiros porque sou o que sou, e quer saber como eu o fiz. Pois o senhor deseja essa imortalidade, deseja ser como eu, não é? — E diante do olhar de asco contido e falso, e do silêncio muito esclarecedor de Coriolano, Mônica sorriu e disse, em sua ainda potente, mas agora bela e musical voz feminina, a sua voz natural: — Eu vou te contar então, senador do povo brasileiro, preste atenção que vou contar o que aconteceu naquela noite, mas não vou direto ao ponto, pois eu preciso deixar suas mentes atentas ao contexto. Era uma vez… Uma equipe da Polícia Federal que estava de campana na Bahia, vigiando de perto um político extremamente corrupto, o Deputado Antônio Bomeninno, há cerca de seis meses. No início objetivando apenas acumular provas contra ele para um eventual processo, se ele pisasse fora demais da linha demarcada pelo Governo. Mas os federais descobriram, quase sem querer, no meio do caminho, que algo muito grande estava sendo tramado por outro político, um tal Senador Figueiras, que era amante da mulher de Bomeninno, envolvendo propinas de milhões de dólares para manipulação de quem e como seriam feitos os softwares gerenciadores de novas versões das urnas eletrônicas no país.

— Sabemos de tudo isso…

— Avisei que não iria direto ao ponto, uma mulher precisa estabelecer contextos, Senador. — Aqui ela pausou com um sorriso entre falsamente simpático e verdadeiramente debochado — Bem, quando esta informação circulou pelos corredores da Federal, imediatamente os Dragões entraram em movimento, e encamparam a operação antes que a cúpula do Governo a mandasse para o limbo. Sabemos que é imprescindível para o bom funcionamento dos planos dos Dragões que os políticos corruptos que não estivessem nas mãos da organização fossem tirados do jogo. De modo que o que era apenas uma operação para acumular provas contra um ladrãozinho de quinta categoria, tornou-se um procedimento cirúrgico nosso, para extirpar outro bandido, de maior quilate. Para tanto os Dragões usaram o velho método de dar corda para que ele preparasse sua própria forca, então, quando ele buscou com intensidade contato com uma gigantesca empresa multinacional, os Dragões assumiram, infiltrando uma agente na negociação, chamada Érika Steiger, que para os gringos era uma especialista em negociações paralelas no Brasil, e para Figueiras, uma representante extra oficialmente contratada pela tal mega empresa. No fim das contas, para os Dragões, Érika deveria tirar o máximo de informação de Figueiras, e o deixar pronto para o abate. Mas não foi bem assim que tudo se desenrolou, os senhores sabem.

Ocorre que Steiger não enviava notícias há semanas, quando a Comissão mandou a equipe envolvida no caso preparar uma nova inserção de agente infiltrado na operação de Figueiras. Coriolano escolheu pessoalmente a agente especial Mônica Alencar Deveraux como a próxima infiltrada, e tomou a última mensagem de Érika como base para colocar Deveraux no esquema, pois Steiger afirmava que Figueiras procurava febrilmente um hacker que possuísse conhecimentos sobre os sistemas de segurança do Senado. Mônica foi treinada e instruída para saber quebrar os códigos de acesso, e lhe foi dado um hardware especial, uma chave, que a permitiria entrar no sistema do Senado brasileiro, e provar que era a hacker que Figueiras precisava. Mônica, indicada a um comparsa de Figueiras através de um contato também sob controle da Federal, conseguiu uma entrevista virtual com um representante do Senador, e provou ali ser capaz de ajudá-los, então deixou seu número de celular, e ficou aguardando o contato. Foram duas longas semanas em um hotel de luxo baiano aguardando o chamado. Ela, Mônica, se fazendo passar pela engenheira de software Carmem Luzia Rodrigues, a hacker Carmina, e Weltman junto com outros agentes dando-lhe cobertura, disfarçados como hóspedes do mesmo hotel.

Weltman já ouvira falar de Mônica, e já há muito tempo estava bastante curioso a respeito dela. Devia ter ouvido muitas das estranhas histórias que contavam acerca da agente sobrenatural, que lutava sozinha contra vários homens, que era uma mistura de lobisomem com curupira (3), e tinha voz de Iara (4) que congelava a alma. Eduardo havia sido policial civil no Rio de Janeiro, trabalhando na divisão de entorpecentes, teve que lidar com todo o tipo de monstros, alguns dos piores dentro da própria polícia. Não gostava de dizer-se corajoso, era antes disso capaz de respeitar profundamente seus oponentes, e por agir assim chegou mesmo a sobreviver em antros de violência e corrupção com a moral razoavelmente intacta. Era, sim, apesar do que dizia, um homem bom e corajoso, mesmo que um tanto embrutecido pela vida. Portanto, provavelmente não sentiu medo quando esbarrou com Mônica bebendo um drinque no bar do hotel, mas alguma profunda e respeitosa curiosidade. Mal tinha trocado meia dúzia de palavras formais com ela desde o início daquela operação, e aquela poderia ser a oportunidade de conhecê-la pessoalmente. Ela agitou a cabeleira escura, para jogar as mechas para trás, e deu nele uma olhada treinada, miúda e desdenhosa. Provavelmente Weltman a achou, naquele primeiro contato, uma mulher bonita, mas absolutamente normal. As aparências são enganadoras, na maioria das vezes, então o homem resolveu dar mais um passo, feito um gato curioso, e disse simplesmente:

— Boa noite.

— Posso arrastar você para o fundo do lago, agente… Iara, já deve ter ouvido falar… — murmurou ela, quase sem olhar para ele, bem baixinho, de modo que só ele pudesse ouvi-la. Sua boca pareceu divertir-se com as palavras, pois a imagem fugidia de um sorriso passou por ela enquanto falava.

— Gostaria de conhecer a pessoa por trás do rótulo. Posso? — Disse ele, incisivo, mas ainda assim mantendo um tom suave na voz, que deu a ela um pressentimento de que o atraente e charmoso agente poderia ser alguém que ela gostaria de conhecer melhor. Até aquele momento pretendia tratá-lo com a acidez arraigada com que tratava a todos, mas aquelas palavras duras, mas honestas, a fizeram mudar de ideia.

Ela ajeitou-se na cadeira alta do bar, fez um sinal para o barman que colocou uma nova taça de vinho sobre o tampo à sua frente, e ela se apressou a dizer: — Mais uma, por favor. — E voltando-se para Weltman: — Bebe um chadornay comigo, cavalheiro?

— Vinho? Sim, obrigado. — Disse Eduardo.

— Bem, mas que tal sentarmos em uma mesa e verificarmos o que pode ser feito acerca de rótulos, monsieur?

Ele aquiesceu, e ambos foram para uma mesa mais reservada. Mônica pediu e levou consigo a garrafa de vinho. A aparentemente jovem mulher pousou sobre a mesa a garrafa e uma pequena e provavelmente caríssima bolsa que trazia consigo à tira colo. Era um tanto fora de protocolo que, durante a missão, eles se falassem assim, mas Weltman precisava saciar sua curiosidade, e Mônica precisava se distrair durante aquela noite tão parada, conversando com alguém interessante.

— Sabe que Coriolano vai reclamar feito uma velha coroca quando souber que quebrou o protocolo vindo me dar o prazer de sua companhia, não sabe? — Disse ela com um sorriso jovial e leve. Ela parecia tremendamente descontraída, mais ainda assim Weltman podia perceber algo no olhar de Mônica que recendia a coisa antiga, pesada, como se ela tivesse visto mais coisas do que sua idade aparente permitiria, e que muitas dessas coisas tivessem sido bem ruins. O homem reconheceu um pouco do seu próprio olhar no dela.

— Respeito o velho, mas ele não está aqui. Ele que se dane, o Malvadeza. Vou tentar saber quem ele é outra hora. — E sorriram um para o outro, riso franco, enquanto se serviam de vinho. Então Weltman voltou a falar: — Pois bem, quem é você, Mônica?

Mônica ficou mirando Eduardo, como se estivesse estudando até que ponto o cara poderia aguentar a verdade, o que fez o homem sorrir para ela, um sorriso que muitos chamavam de sorriso canalha, mas que era apenas a franqueza nua da alma dele, dizendo “somos de carne e osso”. A bela mulher colocou a taça em que bebia sobre a mesa, acompanhando o movimento com os olhos. Depois voltou a olhar para o homem na frente dela e, para total surpresa do sujeito, entoou, sorrindo delicadamente, em uma voz também delicada e docemente afinada:

— Talvez você não entenda, mas hoje eu vou lhe mostrar. Eu sou a luz das estrelas. Eu sou a cor do luar. Eu sou as coisas da vida. Eu sou o medo de amar. Eu sou o medo do fraco. A força da imaginação. O blefe do jogador. Eu sou, eu fui, eu vou… — e concluiu, apenas recitando a letra, e não mais cantando, sem sorrir, na verdade com um tom taciturno no olhar: — Eu sou a beira do abismo…

E então, mudando novamente, agora com a expressão mais pura e delicada no olhar antigo, Mônica baixou os olhos, e ficou observando, sem ver, a taça de vinho quase extinto.

Depois de um longo momento fitando a garota, Weltman voltou a respirar. Ele não sabia o que dizer. Não fora ali paquerar Mônica, seu objetivo não era tão primário assim, embora ela o estivesse atraindo mais e mais, mas antes queria conhecer a tal super agente, coisa necessária se iriam operar profissionalmente juntos. Ocorre que ela o estava encantando, depressa, e ele acabara de descobrir que não sabia o que fazer quanto a isso.

— Bonito. — Ele disse, enfim.

— Apenas o Raul, sujeitinho doido, mas muito legal.

— Fala com intimidade, é fã do trabalho do cara?

— Não, eu o conheci pessoalmente, e avisei a ele que aquela história de “Grã Ordem Kavernista” ia lhe custar o emprego. — Ela deu uma piscadela e riu, Eduardo riu também.

Ele, encarando o bom humor dela como uma piada sobre ter convivido e aconselhado um artista morto quando ela ainda deveria ser um bebê, e meio sem se aperceber o que ele próprio estava fazendo, mas agindo simplesmente porque precisava agir, pegou ambas as mãos dela nas suas próprias, por sobre a mesa, e ficaram se olhando longamente. Então Mônica disse:

— Você não quer fazer isso. Eu sou a beira do abismo, lembra?

— Quando entramos para os Dragões, eles nos dão as fichas das pessoas que vão trabalhar em nossa equipe, e a sua era vaga, quase incompreensível,  como se você tivesse uma liberdade especial de colocar ali o que quisesse. Encontrei apenas alguns poemas escritos por você,  e uma foto sua… Nunca vi aquilo. Eu confesso que reclamei com o cadastro, e eles me disseram que o Malvadeza em pessoa mandou deixar como estava.

— Ah! — Fez ela, repetindo sem perceber o lindo e singelo sorriso de moleca da tal fotografia, e, claro, tangenciando o assunto a respeito das liberdades especiais dela — Sei qual é. A foto. Ah, fui pega totalmente de surpresa naquela foto!

— Estava encantadora, mas o que me impressionou ainda mais foram seus pensamentos… Os poemas, reclamei mas li. Durante o período de adaptação, eu treinei com homens que já haviam trabalhado contigo, e eles falavam a respeito de uma mulher corajosa, que eles respeitavam, mas que temiam muito, eu podia ver o receio deles nas entrelinhas, eles não tinham só medo, tinham verdadeiro pavor de você. E eu dizia pra mim mesmo que aquilo não tinha nada haver com a mulher dos poemas. Então achei que eu gostaria de conhecer a verdadeira Mônica, com a qual finalmente eu vou trabalhar.

— Ninguém conhece.

— Eu desejo honestamente conhecer. A verdadeira. — E ele ficou olhando para ela, que lhe devolvia um olhar doce, a coisa antiga em seus olhos parecendo arrefecer, se fazer menina, uma menina que sonhava, como todas as meninas sonham.

Então, sem resistir mais nem um segundo, Weltman inclinou-se em direção dela. E a beijou. Um beijo em crescente, um beijo que começou brando, mas tomou ares de tempestade, como se um devorasse a boca do outro! Doçura, vinho, e hálitos saborosos e passionais misturando-se, em uma sensação formigante e inebriante que lhes tomava os corpos, aquecendo-os e atiçando a fome de quero mais e mais! A tempestade deu lugar a suavidade, e voltou a rugir, duas, três vezes, e ninguém estava contando mais depois disto. Quando, enfim e depois de longo e marcante beijo, o fôlego se acabou (mesmo que o ardor só estivesse começando) abraçaram-se, aconchegando-se um ao outro. Então Mônica, que pousou a cabeça no ombro do homem, pôde sentir o odor masculino dele, penetrante e atraente, um cheiro muito bom, excitante, quente, muito quente, que a envolvia numa sensação incrível de liberdade e submissão ao mesmo tempo, de segurança… Mas também, após um momento de inocência ardorosa, que passou rápido demais, Mônica pôde sentir a pulsação hipnótica e acelerada do sangue teso e passional de Weltman na jugular do pescoço dele, podia mesmo sentir-lhe o gosto exalando da pele.

Quando ela deu por si, percebeu que ansiava por beber da vida dele, e que o predador voraz dentro dela começava a vibrar, inflamando-se! Mônica, imediatamente, soube que ela não deveria e não poderia fazer aquilo, que não poderia sequer arriscar se apaixonar por ele, não poderia jamais amar de novo, e matar de novo! Foi neste instante que ela se desesperou, mais uma vez, com sua sina monstruosa: quando foi engolida pelas trevas, quando voltou do mundo das sombras e do ar, há mais de quarenta anos atrás, Deveraux passou a viver o estigma de sua fome medonha, capaz de matar quem lhe era indiferente, quem ela temia, mas também quem ela amava. Mônica sentiu crescer o angustiante horror de si mesma em seu coração! Subitamente levantou-se, apavorada e enojada de si mesma! A cadeira em que ela havia sentado caindo para trás, com estardalhaço, e os olhos de Weltman tentando entender o por quê daquele rompante. Ela sabia o que precisava dizer, e disse, não muito alto, mas com intensidade cortante:

— Já descobriu o gosto que eu tenho? Pode dizer aos outros rapazes que sou de carne e osso, pois deve ter apostado com eles que iria vir aqui me dar um pega e ver qual é, não foi?

— Eu não…

— Ah, me poupa, Weltman, você vai me dizer que é um cara que não julga as pessoas? Que não vai me crucificar também assim que descobrir o monstro que eu sou. Pois escreve aí, agente Eduardo… — Em seguida ela cantarolou novamente a música, com afinação, mas também com ácida ironia na voz: —  Eu sou o sangue no olhar do vampiro.

E ela sorriu com um falso deboche, e saiu caminhando para longe com elegância, deixando o homem atrás de si entendendo muito pouco, e aborrecido por ter sido julgado sem direito a defender-se, e ainda mais contrafeito por causa da impressão de que ela brincou com ele durante aquele beijo. Em essência sendo um homem tímido, quando se tratava de relações, ele se sentiu um completo idiota, envergonhado por, pela primeira vez desde a juventude, se deixar levar por um momento bobo e passional, e embaraçar-se daquele modo com uma colega de trabalho. Pior ainda se sentia quando, olhando para dentro de si mesmo, percebia que a mulher não deixara nele uma impressão passageira.

Somente quando Mônica, por sua vez, entrou no elevador, e se viu absolutamente sozinha, foi que se permitiu chorar. Chorar por, há mais de quarenta anos, estar morta. Sentia-se e transpirava solidão, uma solidão que nenhum ser humano seria capaz de experimentar, enquanto humano. A mulher apoiou as costas no espelhado interior do elevador, e, torcendo para que ninguém entrasse (o que, dado seu estado e sua natureza sombria, afastaria mesmo qualquer um que não tivesse um motivo de vida ou morte, ou que possuísse força de vontade sobre-humana), olhou para o alto, como buscando um Deus que ela, sinceramente, almejava existir, e deixou lágrimas ardentemente dolorosas escorrerem-lhe pelas faces suaves.

Justo naquele instante seu celular chamou, com mensagem de Figueiras, marcando encontro com ela para a noite seguinte.

CONTINUA…


Mônica – Livro 1

Primeiro livro da série Mônica Deveraux, de Wagner RMS. Em pleno regime militar brasileiro, Mônica Alencar Deveraux, jovem inteligente e doce, é presa injustamente e, antes de morrer, é transformada pelo Povo Antigo (sonhos e pesadelos que ainda vivem em florestas e vales esquecidos, e mesmo aqui, nos escuros interstícios da cidade) em uma poderosa…

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