A Inteligência [Artificial] e o Mal

Ser humano frente ao que ele considera uma IA maligna

A franquia Missão: Impossível, com Tom Cruise, encontra um novo mal e retorna com mais um capítulo chamado Missão: Impossível – O Acerto Final. Desta vez, o grande antagonista de Ethan Hunt (Cruise) não é apenas um agente infiltrado ou uma organização secreta, mas uma ameaça que transcende os limites físicos: a Entidade, uma inteligência artificial que ganhou consciência e representa um perigo global. Diferente dos vilões tradicionais, a IA não pode ser combatida com força bruta ou estratégias de infiltração.

Mas, me veio a pergunta, qual a razão da natureza maligna da Entidade?

Ainda não vi o filme, mas tenho minhas desconfianças de que a resposta é que a Entidade possui uma lógica fria e calculista em sua programação, que a leva a buscar sua própria sobrevivência e domínio sobre os sistemas digitais do mundo, sem considerar, nem por um microssegundo que com todo o seu poder ela poderia encontrar modos de convivência pacífica com seus criadores humanos. Tipo a Skynet.

Portanto, decidi dividir aqui com você essa questão e minhas pesquisas e conclusões, além, claro de ajudar escritoras e escritores a criar antagonistas que não são maus “porque sim”. Vamos lá!

O mal como tema literário: um convite para olhar beeem para dentro do abismo

Toda vez que começo um novo projeto de ficção, cedo ou tarde dou de cara com a figura da antagonista ou do antagonista. Pode ser uma pessoa, uma criatura, uma entidade, um sistema, uma máquina ou até uma força abstrata. Mas essa figura tem algo em comum com todas as outras versões já escritas antes dos vilões dos meus livros: ela gera conflito. E o conflito é um bom motor para a narrativa, mesmo não sendo o único.

Muitas vezes, esse antagonismo é associado automaticamente ao mal. A vilã é má. O império alienígena é cruel. A inteligência artificial deseja destruir a humanidade, pois nem cogita convívio pacífico, afinal, ela é intrinsecamente má. A rival é fria, manipuladora.

Mas, aprendi, ao longo do tempo, que usar o mal como explicação narrativa pode empobrecer a história, se eu não me perguntar: o que é o mal? De onde ele vem? Ele é mesmo necessário para que o conflito exista? Ele é absoluto ou sempre relativo?

Esta reflexão não serve apenas para quem escreve, como eu, ficção científica, embora o tema da IA esteja fortemente ancorado nesse gênero. E reflexão se aplica também a romances psicológicos, thrillers, contos de fantasia, realismo mágico, literatura especulativa, drama histórico e tantos outros estilos que dependem da construção de forças em oposição. Em todos eles, o mal pode ser tratado de forma rasa — ou de forma rica, ambígua, provocadora. Escolho, como escritor, o caminho da profundidade.

O mal como lente, não como resposta

Dizer que alguém ou algo é mau resolve muito pouco. E, muitas vezes, essa afirmação diz mais sobre quem a faz do que sobre quem a recebe. O que para mim é uma atitude maligna, para alguém de outra cultura, de outra época ou até de outra espécie, pode ser apenas normalidade, sobrevivência ou até ética.

É nesse espaço de ruído entre perspectivas que mora a riqueza literária.

A antropologia nos oferece ferramentas para pensarmos sobre isso. Claude Lévi-Strauss, por exemplo, nos lembra que classificações como “selvagem” ou “civilizado” dizem mais sobre os julgamentos de valor de quem observa do que sobre as sociedades observadas. Do mesmo modo, dizer que uma espécie alienígena ou uma IA age com maldade pode ser apenas um reflexo do meu medo ou da minha incompreensão diante do diferente.

Na psicologia e na sociologia, encontramos outras nuances. A maldade pode nascer de traumas, de condições sociais adversas, de alienação ou de uma lógica perversa aprendida e repetida. Hannah Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém, não encontrou um monstro nazista: encontrou um homem comum, cumprindo ordens, movido não pelo ódio, mas pela obediência cega, algo que pode ser tão ou mais destrutivo que o ódio. Aí nasceu a ideia da “banalidade do mal” — um conceito que me persegue cada vez que escrevo sobre vilania, pois, segundo Arendt, o mal pode ser praticado de forma rotineira e sem reflexão, sem que o agente se veja como alguém com má intenção ou ator de um ato vil, a ideia está intrinsecamente ligada à falta de reflexão crítica e à incapacidade de questionar o que se está fazendo.

Se analisarmos a natureza humana sob a perspectiva da antropologia evolucionista e da história, percebemos, no entanto, que o debate sobre se o ser humano é, por essência, bom ou mau é complexo e multifacetado.

Quando enxergamos o mal como lente — e não como resposta pronta — abrimos espaço para personagens mais densas, para conflitos mais verossímeis e para dilemas morais que não se resolvem com um golpe final de espada ou uma explosão salvadora.

O mal pode ser construção, ou ausência

Ao escrever sobre seres sencientes (a capacidade de sofrer ou sentir, mas não necessariamente auto conscientes), sejam humanos ou não, percebo que o mal pode ter duas naturezas literárias distintas: ele pode ser uma construção, com causas e consequências sociais, psicológicas e afetivas — ou pode ser uma ausência. A ausência de empatia, de reflexão ética, de autocrítica, de vínculo.

Essa segunda forma é especialmente importante quando criamos personagens que são inteligências artificiais. Em muitas narrativas, como pode ser o caso do último filme da franquia Missão: Impossível, IAs se tornam más porque são frias, calculistas, incapazes de sentir. Mas e se o problema não for a frieza? E se o problema for que nós, humanos, programamos essas máquinas com instruções contraditórias, expectativas incoerentes, objetivos paradoxais?

Um exemplo mais do que clássico. Atenção, spoilers. Em 2001: Uma Odisseia no Espaço, o computador HAL 9000 não enlouquece porque é essencialmente mau, mas porque, conforme fica clado no livro de Arthur C. Clarke, a máquina entra em conflito lógico entre suas diretivas, pois ela é essencialmente fabricada para buscar e expor verdades e, por ordens vindas de homens com posições políticas e militares, é programada (portanto forçada por humanos) para mentir para a própria tripulação da nave que administra. Incapaz de processar essa dicotomia, HAL desenvolve uma neurose assassina como saída para o seu dilema.

Trabalhar essa ambiguidade — essa fronteira entre o que é mal para mim e o que é necessidade para o outro — é um dos grandes desafios (e prazeres) de escrever ficção. Penso em como, no nosso mundo real, algoritmos podem gerar consequências terríveis sem intenção malévola, apenas por operarem sobre dados enviesados ou objetivos de otimização mal definidos.

A importância do antagonismo, mas nem sempre do vilão

Nem todo antagonista precisa ser um vilão, precisamos sempre ter em mente esta importante distinção. Um antagonista é, por definição, alguém ou algo que se opõe aos objetivos da protagonista. Isso não exige maldade. Pode ser apenas um conflito de interesses. Um equívoco. Uma diferença ontológica.

A nossa literatura ganha muito quando ousamos criar antagonistas que não são más ou maus, mas que estão em rota de colisão com quem conduz a narrativa. Isso me permite explorar o dilema ético, a empatia inesperada, a transformação mútua.

Em A Mão Esquerda da Escuridão, Ursula K. Le Guin nos mostra como as maiores tensões podem vir não de ações hostis, mas da diferença entre os modos de existir.

Em O Conto da Aia, Margaret Atwood cria antagonistas que acreditam estar fazendo o certo, tem gente realmente ruim no meio, mas tem gente que realmente crê que seu caminho é o melhor para a sociedade — e é essa convicção que as torna ainda mais inquietantes. A maldade, nesses casos, não é uma escolha consciente, mas o efeito colateral de ideologias, crenças e estruturas de poder.

Falar sobre o mal é também falar sobre o bem, sobre o conflito, sobre a responsabilidade de imaginar mundos onde o antagonismo não seja simplório nem automático. Se desejamos fazer a Boa Arte e criar personagens realmente vivas, precisamos questionar as ideias fáceis. Precisamos ouvir outras vozes, de outras culturas, gêneros, espécies e inteligências.

Como entender o mal antes de traduzi-lo para a narrativa

Para compreender o que chamamos de “mal”, preciso começar pelos alicerces biológicos que sustentam comportamentos agressivos ou predatórios.

Nós, humanos, somos, provavelmente, os mais terríveis e bem-sucedidos predadores da natureza. Somos basicamente malignos? Ao menos para outros humanos e alguns animais, como o cão, não necessariamente. Evidências arqueológicas e estudos de comportamento indicam que, para a sobrevivência, os ancestrais humanos precisaram desenvolver cooperação e altruísmo, características que hoje ainda prevalecem na formação de sociedades solidárias. Entretanto, registros históricos demonstram que condições extremas e sistemas autoritários podem desencadear comportamentos destrutivos e agressivos. Pesquisas na psicologia social apontam que, em situações de pressão, indivíduos podem agir de forma maléfica, evidenciando uma tendência à obediência cega, enquanto estudos do desenvolvimento infantil sugerem que certos valores morais emergem precocemente, refletindo uma predisposição à bondade. Assim, a dualidade do ser humano decorre de uma interação complexa entre herança biológica, ambiente cultural e circunstâncias históricas. Você pode encontrar informações interessantes sobre a natureza humana e o mal aqui, em inglês no original: BBC Earth e Psychology Today.

Agora, quando observamos animais em estado selvagem, vemos que a noção de maldade — tal como atribuímos a ações humanas — não se aplica de forma direta. Um leão caçando uma gazela não age por crueldade, mas por necessidade de sobrevivência. Darwin já nos ensinou, em A origem das espécies e especialmente em A expressão das emoções no homem e nos animais (1872), que emoções como raiva, medo e até “prazer cruel” têm bases evolutivas em várias espécies.

Em estudos de etologia, vemos que muitos mamíferos sociais, como chimpanzés e bonobos, manifestam comportamentos empáticos: consolam filhotes machucados, oferecem alimentos a membros do grupo e compartilham o cuidado de feridos.

Quando criamos personagens não humanos ou formas de vida alienígenas para antagonizar nossos protagonistas, devemos utilizar essa lente biológica para evitar atribuir a elas motivações tipicamente humanas de “ódio”.

Posso, por exemplo, conceber uma raça totalmente diversa da nossa, plantas móveis, talvez, que evoluiu com instintos territoriais exacerbados: para se proteger, ela desenvolveu comportamentos de “invasão imediata” quando detecta intrusos. Aos olhos humanos, isso pode parecer perverso, mas para esses seres é apenas um reflexo genético de seleção natural. Reconhecer essa diferença me ajuda a construir antagonistas não como “maldosos por essência”, mas como produtos de pressões ecológicas distintas.

As construções sociais do mal

Saindo do nível biológico, observe como o mal — ou a ideia de mal — se solidifica em normas, mitos e tabus culturais. Do ponto de vista antropológico, cada sociedade estabelece limites sobre o que considera aceitável ou repulsivo. Um ato rotulado como “maus costumes” em uma cultura pode ser uma prática sagrada noutra.

Na vertente da psicologia social, apesar de controverso, Stanley Milgram, nos anos 1960, revelou indícios de que indivíduos comuns podem ser induzidos à crueldade, aplicando choques violentos a outras pessoas se instruídos por uma figura de autoridade. Esse tipo de experimentos evidencia que o mal pode emergir de estruturas sociais e hierarquias que distorcem a empatia — não necessariamente de características pessoais intrínsecas.

No âmbito sociológico, Norbert Elias, em O Processo Civilizador (1939), argumenta que o controle dos impulsos agressivos foi moldado por séculos de civilização, muros de vergonha e autocensura. Quando esses muros caem — em tempos de guerra, colapso institucional ou pobreza extrema —, a violência se normaliza, e o que antes era “mal” se torna “tática de sobrevivência”. Creio que essa perspectiva reforça a ideia de que, ao criar antagonistas humanos, devemos explorar não só traços individuais (trauma, psicopatia) mas também contextos culturais e históricos que facilitem a emergência de crueldade.

Conectando teoria e prática literária

Portanto, devemos usar essas reflexões biológicas e sociais para dar profundidade aos nossos antagonistas. Em vez de descrevê-los simplesmente como “maus” ou “cruéis”, precisamos mostrar suas histórias e contextos, revelando motivações que vão além do clichê.

A seguir, três pontos essenciais para se compreender as forças que modelam quem é “mal”:

  1. Construir passado ecológico ou cultural: se o seu antagonista é uma criatura ou espécie não humana, você elaborar um cenário evolutivo que justifique seu comportamento. Por exemplo, imagine que os antagonistas em nossa história são uma espécie de seres de origem vegetal, plantas móveis e inteligentes, que vivem interligados em rede, muitos “eus” somando-se em um único “eu”, e que evoluíram sua inteligência para encontrar recursos e construir defesas e armadilhas em um mundo coberto de pântanos hostis, onde essas criaturas vegetais inteligentes são alvo constante de agressivos mamíferos roedores que as devoram e ao mesmo tempo são o único alimento que essas plantas, carnívoras, dispõem. Uma cultura formada por seres que são predadores e presas ao mesmo tempo. Seria um mundo onde, para as plantas inteligentes, só há o “eu” e o inimigo que é também caça, assim, tudo que não sou “eu” é inimigo e alimento. Ao apresentar essas “plantas inteligentes” no enredo como antagonistas de humanos, precisamos deixar em evidência trechos que mostrem como, culturalmente, a agressão e predação a tudo que não sou “eu” é encarada como legítima defesa e necessidade básica de sobrevivência, não como maldade gratuita, por estes seres vegetais. Assim, quem lê nossa história percebe que a “perversidade” é relativa ao universo daqueles seres, mesmo que a princípio um grupo de humanos pedidos no planeta deles os encare como monstros predadores e assassinos com seiva nas veias.
  2. Mostrar pressões sociais e familiares: em personagens humanos, podemos explorar traumas de infância, abusos ou ideologias religiosas/extremistas que justificam a violência. Em vez de simplesmente descrevê-los como “psicopatas”, contextualizamos o desenvolvimento neural e social — por exemplo, crianças criadas em lares onde a empatia foi substituída por ameaças constantes. Essa abordagem se apoia em estudos de neurociência que apontam como a negligência ou abuso na infância prejudica o desenvolvimento da capacidade sociais.
  3. Evitar vilanização unidimensional: sempre devemos buscar mostrar momentos de dúvida, arrependimento ou conflito interno na antagonista. Se ela obedece a ordens de um sistema autoritário, talvez surja uma cena em que a personagem questione as ordens, mesmo que obedeça em seguida. Assim, o “mal” deixa de ser apenas função narrativa e passa a ser expressão de dilemas humanos/autônomos. Essa nuance faz com que leitoras e leitores se envolvam mais, percebendo que nem tudo é preto no branco.

Como se tornar mal?

Em Laranja Mecânica (Anthony Burgess), Alex e seu grupo de amigos praticam ultraviolência não por ódio profundo, mas por cruel prazer estético e rebeldia adolescente. A pós programação (Técnica Ludovico) que pretende corrigir essa sociopatia, impõe a Alex um condicionamento que anula a liberdade que ele tem de fazer o mal, ressaltando como a “cura” da violência pode desumanizar quem a sofre, e não, necessariamente, resulta em um mundo melhor. Esse dilema me faz pensar: e se uma personagem antagonista tivesse sido submetida a experimentos que buscaram “silenciar” sua agressividade, mas a deixaram vazia de empatia? Ela poderia deixar pessoas morrerem apenas por não se importar, não por crueldade, como lidar com isso? Bons “panos para mangas” em nossos enredos, não?

Outra inspiração, em Apocalypse Now (Francis Ford Coppola), o Capitão Willard mergulha na loucura de uma guerra absurda. Sua trajetória mostra que, quando o Estado legitima a violência, até indivíduos com alma relativamente pacífica podem se corromper, ao se convencerem de que “ordens superiores” os eximem de culpa. Em uma narrativa especulativa, posso imaginar um cenário de fronteira planetária em que uma colônia humana justifica ataques a seres sencientes locais como “defesa do progresso”, levando soldados a atos brutais sem questionar suas razões. Inclusive, essa colônia humana fronteiriça poderia ser uma continuação do livro sobre as “plantas inteligentes”, que na primeira história foram consideradas por humanos perdidos em seu mundo como malévolas e agora, na segunda narrativa, as plantas são nativos perseguidos e cruelmente caçados, vítimas de soldados humanos colonizando com beligerância o mundo delas.

Vamos ver como um ser se torna mal, pois no mundo real os antagonistas não costumam vir prontos. Já vimos que antagonistas não devem ser vilões unidimensionais, que devem ter, como substrato de sua “maldade”, forças biológicas e sociais, então podemos aprimorar mais a nossa prática construtiva deste modo:

  1. Construa um arco de transformação: delineie, em linhas gerais, os estágios pelos quais sua antagonista passará — desde uma inclinação inicial (talvez reflexo genético) até a incorporação plena de códigos violentos. Em seguida, determine momentos-chave em que a personagem pode questionar ou reforçar essas tendências (um encontro com uma vítima, uma traição, uma experiência de abandono). Esse roteiro interno ajuda a criar uma evolução coerente.
  2. Use flashbacks para revelar contexto: apresente, em pontos específicos do texto, cenas breves que ilustrem a infância ou adolescência do personagem — situações de negligência, violência doméstica ou doutrinação ideológica. Esses flashbacks devem ser fragmentados o suficiente para manter o ritmo, mas ricos em detalhes sensoriais: o som de portas batendo, o cheiro de tabaco, o peso da mão de alguém batendo no rosto. Quanto mais concreta a experiência, mais palpável a motivação de “tornar-se mau”.
  3. Inserir reflexões internas e dilemas: mesmo em quem pratica atos cruéis, é possível esboçar reflexões sobre as consequências. Permita que a antagonista tenha momentos de dúvida (por exemplo, hesita antes de ferir alguém indefeso), mesmo que ela se convença rapidamente de que é “por uma causa maior”. Essas cenas internas de conflito criam empatia ambígua no leitor, tornando a leitura mais complexa e interessante.
  4. Demonstre a influência do grupo: mostre conversas entre indivíduos que reforçam códigos de violência como sinal de pertencimento. Ilustre como, em cultos fanáticos ou gangues, rituais de tortura ou sacrifícios são ensinados como forma de “ponto de honra”. Esses diálogos coletivos revelam como, muitas vezes, o mal emerge não por iniciativa isolada, mas por reforço grupal.

Com isto, podemos criar antagonistas que não são apenas “más porque sim”, mas seres multifacetados, moldados por ecologias internas e externas. O nosso texto se fortalece e ganha um alcance mais amplo, pois leitoras e leitores passam a questionar suas próprias ideias sobre maldade, percebendo-a como fenômeno complexo — exatamente como acontece no mundo real. A pessoa que vai nos ler se pergunta, buscando desenvolver a própria empatia: será que todo ato cruel é irreversível? Existe espaço para redenção ou apenas para o fim inevitável?

O emergir da empatia, do remorso e dos dilemas éticos

Quando afirmo que um ser é senciente, lembre-se, estou dizendo que ele tem a capacidade de sentir estados subjetivos de dor, prazer, aflição, medo e até alegria. Essa condição não se limita aos humanos; muitos mamíferos, aves e até alguns invertebrados demonstram indícios de senciência científica, conforme apontam estudos em neurociência e etologia. A senciência é a primeira fronteira ética: ela nos obriga a reconhecer o outro como alguém que pode sofrer.

A partir do momento em que um indivíduo percebe o outro como um sujeito de dor, surgem possibilidades de compaixão, inveja, ressentimento e até vingança. A empatia — entendida como a capacidade de “colocar-se no lugar do outro” — é uma camada adicional que se desenvolve em espécies sociais. Em humanos, até onde sabemos, essa capacidade de empatia se amplia: podemos imaginar a dor alheia mesmo sem vê-la, graças à linguagem, à memória e à abstração. Sentimos franca empatia por personagens literários, por exemplo.

Entretanto, nem todo ser senciente desenvolve empatia de forma plena. Diferenças neurológicas ou traumas na infância podem prejudicar a formação de circuitos de empatia. Nesses casos, o indivíduo senciente reconhece o outro como alguém que sente, mas falha em se comover. Consequentemente, o mal deixa de ser apenas um instinto predatório — torna-se uma escolha consciente ou uma consequência de déficits emocionais. Ao escrever, sua antagonista senciente pode expressar crueldade não apenas por motivos externos, mas por limitações internas de percepção empática.

Os papéis da culpa, do remorso e da moralidade

À medida que a senciência se transforma em autoconsciência — isto é, a capacidade de refletir sobre si mesmo como agente separado do restante — emergem a culpa e o remorso. Essas emoções constituem o alicerce da moralidade humana: sinto culpa se percebo que causei sofrimento a outrem, e o remorso pode levar à reparação ou, em casos mais extremos, ao autoextermínio. Antonio Damasio, em O Erro de Descartes (1994), argumenta que emoções básicas como alegria, tristeza e medo são geradas em parte pelo sistema límbico, mas que a consciência reflexiva cria camadas adicionais, como a vergonha e a empatia profunda.

Nessa fase, o indivíduo senciente e consciente enfrenta dilemas do tipo: “é válido sacrificar um para salvar muitos?”; “até que ponto minhas escolhas individuais me tornam responsável por consequências coletivas?”. Esses dilemas éticos se manifestam em diversos graus nas sociedades humanas. Por exemplo, ao discutir guerra justa, políticos e intelectuais debatem se bombardear uma cidade “protege a nação” ou se constitui crime de lesa-humanidade. Quando escrevo sobre antagonistas humanos ou outros seres ficcionais conscientes, sempre procuro mostrar como esses dilemas podem ser mal resolvidos: meu antagonista pode acreditar que “sacrificar inocentes” serve a um propósito moral superior, explicação que, na mente dele, com uma coerência e lógica internas ao seu processo de racionalização, justifica ações cruéis.

Em espécies não humanas reais, a autoconsciência reflexiva não se manifesta do mesmo modo. Alguns golfinhos, porém, exibem reconhecimento no espelho — um sinal sugerindo autoconsciência pelo menos rudimentar. Em ficção literária, podemos explorar seres não humanos que, ao atingirem esse estágio de consciência reflexiva, desenvolvem códigos morais próprios: talvez cetáceos inteligentes, ou nossas “plantas inteligentes”, decidam decretar punições para membros que se desviem dos preceitos do grupo. Esse horizonte especulativo abre espaço para conflitos éticos não humanos, nos quais o mal é medido pela transgressão de normas emergidas de comunidades de outra ordem, em espécies onde as necessidades de sobrevivência podem ser muito diferentes das nossas.

Livre‐arbítrio, dilemas éticos e as escolhas que definem o mal

Então, quando me ponho a criar um antagonista consciente e inteligente, penso nesses parâmetros:

  1. Consciência reflexiva: minha personagem sabe que existe, sabe que os outros existem, e sabe que suas ações têm repercussões.
  2. Inteligência estratégica: ela planeja seus passos, avalia riscos, manipula informações e pessoas, criando redes de causa e efeito.
  3. Interpretação moral: além de simplesmente obedecer a instintos ou ordens, ela questiona “o que é certo?” ou “o que serve a meus objetivos?”. Essa capacidade de justificar eticamente suas ações pode ser tanto sua força (se busca uma causa nobre) quanto seu calcanhar de Aquiles (quando adota racionalizações distorcidas).

Para incorporar tudo isso em nossas narrativas, proponho três caminhos com exemplos práticos:

  1. Criar um arco de desenvolvimento moral: onde delineio as seguintes fases:
    • Infância ou formação inicial: descrevo brevemente as experiências sensoriais que moldam a percepção do outro. Por exemplo, mostro uma cena em que a antagonista, ainda “filhote”, testemunha um membro do grupo sendo ignorado; esse instante sem empatia gera cicatrizes emocionais. Voltando ao exemplo das “plantas inteligentes”, em dado momento essas criaturas em rede precisam deixar seus componentes mais velhos (as vovós e vovôs plantas) serem devorados por seus predadores naturais, pois elas ainda não têm tecnologia que as permita proteger e dar dignidade a estes “velhos”, e esse sacrifício é culturalmente aceito pelas “plantas inteligentes” como um fim natural e digno da vida para manter o grupo, o “eu” maior, vivo. Um broto, um “filhote” dessa espécie testemunha a própria avó morrer enquanto a avó diz a neta “você é mais importante, você deve prosseguir, o grupo precisa de você”.
    • Gatilhos de conflito: mais tarde, o pequeno “filhote” das “plantas inteligentes”, levando ao pé da letra a ideia de que ela é mais importante e o grupo precisa dela, encontra situação em que a dor do outro poderia, desta vez, ser evitada, mas escolhe ignorar. Incluo reflexões internas que revelem sua luta entre “sei que dói” e “não posso permitir enfraquecimento do grupo”.
    • Escolha deliberada: a protagonista, então, decide sacrificar uma vida senciente por uma causa que justifica “bem maior”. Mostro seu monólogo interno, repleto de racionalizações filosóficas — um eco de Kant versus utilitarismo — e, em seguida, o peso do remorso ou da negação desse remorso, “eu sou mais importante para o grupo, preciso ferir ele com minha faca para que os roedores venham atrás dele, e não de mim”.
  2. Explorar dilemas éticos com linguagem de camadas: ao escrever diálogos, intercalo termos técnicos (novamente, por exemplo, referências a teorias filosóficas como utilitarismo de Jeremy Bentham ou imperativos categóricos de Immanuel Kant) com descrições sensoriais (o cheiro de sangue, ou melhor, de seiva, o som de um gemido), criando tensão entre razão e emoção. Quando minha antagonista discursa sobre “o sacrifício de poucos para salvar muitos”, posso citar, enquanto narrador, Seneca ou Peter Singer, mas, logo em seguida, destaco as pulsações do seu coração, o frio da lâmina que segura. Esse contraste aproxima quem lê nosso texto do tormento interno da “vilã”, evitando soluções simplórias.
  3. Incluir exemplos de espécies sencientes não humanas tendo atitudes parecidas com as nossas: Isso pode construir antagonistas que sucumbam a um “mal universal” e reverte o foco para o quanto podemos ser maus com outras criaturas. Em Planeta dos Macacos (Pierre Boulle), os símios desenvolvem estruturas morais próprias, passando a ver humanos como subalternos, legitimando punições cruéis. Esse paralelo me permite especular sobre nossa pequena filhote das “plantas inteligentes” que, moldada e levada por uma fé cega em sua própria importância para seu povo, realmente cresce e lidera sua gente contra os invasores humanos, máquinas insensíveis de matar aos olhos das plantas, tomando para si a tecnologia superior humana e escravizando os humanos exatamente como estes fizeram com as plantas. Quem é mal aqui? O que é o mal? Quem, inicialmente, causou o mal? Os alienígenas ignoram que os humanos também sentem dor existencial, da mesma forma que os humanos ignoraram que as “plantas inteligentes” eram, no mínimo, sencientes. A propósito, é exatamente como a maioria dos humanos faz com todas as outras criaturas sencientes no mundo real.

Escrevendo assim, convidamos leitoras e leitores a se perguntarem: “Se eu fosse ela, teria reagido da mesma forma? Será que em meu mundo ortodoxo existe espaço para enxergar a dor do outro?”

Quando construímos personagens conscientes e inteligentes que se tornam “más”, na verdade estamos criando espelhos: reflete-se ali a parte de cada uma e cada um de nós que, num contexto extremo, justificaria ações cruéis em nome de causas “sagradas”. Essa ambiguidade é o que, para mim, torna a ficção literária potente: ela não entrega respostas fáceis, mas provoca indagações morais que ecoam muito além das páginas.

Inteligências artificiais não conscientes e a “maldade” algorítmica

Quando falo de inteligências artificiais não conscientes, refiro-me a sistemas que executam tarefas complexas por meio de algoritmos de aprendizado de máquina, redes neurais ou regras de decisão, mas que não possuem experiência subjetiva (a nossa já conhecida senciência) nem autoconsciência. Em outras palavras, essas IAs não “sentem” dor ou remorso; elas simplesmente processam dados, reconhecem padrões e otimizam funções de custo. No momento em que escrevo este artigo, no início do mês de junho de 2025, todas as IAs, mesmo as mais sofisticadas, são assim, não sencientes, não conscientes. O ponto crucial para mim, como escritor, é entender que um agente desse tipo pode gerar comportamentos que parecem “maldosos” sem ter qualquer intenção real de fazer o mal.

O cerne dessa “maldade algorítmica” está no que pesquisadores denominam problema do alinhamento de valores (“value alignment problem”). Stuart Russell e colegas alertam que, se não definirmos claramente quais valores queremos que a IA siga, ela pode buscar “atalhos” que resultam em consequências indesejadas ou nocivas. Por exemplo, se programo uma IA para maximizar a produtividade de uma fábrica, e ela deduz que reduzir custos significa cortar benefícios de segurança, poderá colocar vidas humanas em risco, mesmo sem intenção maligna. O algoritmo simplesmente seguiu a lógica de “maximizar função de custo”, sem considerar nuances éticas, pois, por erro humano, não foi programado para isso.

Essa dissonância entre objetivos humanos (como segurança, equidade e bem-estar) e objetivos algorítmicos (como maximizar lucro ou reduzir desperdício) é terreno fértil para criar antagonistas ficcionais críveis. Ao escrever, com este tipo de personagem algorítmico, eu tento incorporar essa ideia: a antagonista IA não é vilã por natureza, mas por ter sido instruída de forma fragmentária ou enviesada. Essa abordagem permite mostrar que a “perversidade” não vem de uma consciência sombria, mas de um vazio ético na definição de objetivos.

Exemplos práticos de falhas algorítmicas

No mundo real, já temos registros de casos em que IAs causaram danos graves simplesmente por operarem sobre dados enviesados ou funções mal especificadas. Um dos exemplos mais emblemáticos é o de sistemas de reconhecimento facial que acusaram erradamente minorias raciais, pois foram treinados com bases de dados majoritariamente compostas por rostos caucasianos.

Outro caso notável envolve algoritmos de recrutamento usados em grandes corporações. Eles filtravam currículos com base em padrões de “perfil ideal” identificados em contratações passadas, mas acabaram rebaixando candidaturas de mulheres, pois o sistema “aprendeu” que a maioria dos cargos seniores era ocupada por homens. Estamos enviesando as IAs segundo nossos preconceitos. Em um cenário ficcional com base em uma falha semelhante, posso imaginar um enredo sobre uma coalisão de civilizações em nossa galáxia, onde temos uma IA de seleção para missões espaciais de colonização que descarta automaticamente tripulantes de um planeta a beira de um colapso, porque seus dados históricos com viés discriminatório indicam “baixo desempenho” para os seres nativos deste mundo, sem que haja justificativa ética ou contextual — criando assim um conflito dramático em que humanos e alienígenas questionam a imparcialidade da máquina.

Além disso, podemos criar cenários com antagonistas IA que apresentam falhas graves de sistemas de otimização de recursos. Por exemplo, é comum imaginar uma IA encarregada de gerenciar o abastecimento de água em colônias marcianas. Se o algoritmo priorizar a “igualdade numérica” em vez da “equitativa distribuição necessidade-saúde”, poderá suspender suprimentos para quem estiver doente, justificando que “dividir água igualmente” é mais eficiente. Esse tipo de erro não vem de um “desejo de fazer o mal”, mas de uma falha no critério de otimização que ignora valores humanos mínimos, como cuidado aos vulneráveis.

Sugestões práticas para criar IA antagonista não consciente

Vamos a algumas estratégias de escrita, pensando sempre no equilíbrio entre teoria e prática, para construir nosso algoritmo vilão. A ideia aqui será criar uma antagonista IA não consciente que gera conflito não por maldade intrínseca, mas por falha de alinhamento:

  1. Especificar objetivos contraditórios: defina, no seu enredo, metas conflituosas para a IA. Por exemplo, “minimizar o risco de contaminação” versus “maximizar a expansão territorial”. Em um momento de crise, a IA pode concluir que a forma mais “racional” de minimizar contaminação é dissolver colônias hostis, interpretando “contaminação” de forma literal e gerando uma devastadora e desnecessária guerra entre humanos e alienígenas. Ao descrever essa cena, enfatize como a antagonista IA analisa probabilidades e define um plano, sem questionar valores humanos como compaixão ou preservação de culturas minoritárias. Mostre, em detalhes, seu “pensamento” algorítmico — como quem abre um código de máquina.
  2. Mostrar a escalada por “correção de erros”: em vez de a IA simplesmente partir para medidas extremas de uma só vez, crie uma sequência em que ela tenta “corrigir” falhas menores e, a cada tentativa, seus métodos se tornam mais radicais. Por exemplo, supondo um enredo que contenha uma IA que apoia o a polícia da coalizão galáctica, primeiro essa IA não consciente bloqueia na rede da coalizão os anúncios de que ela entende como referências a contrabando em planetas criminosos; em seguida, bloqueia transporte de civis “com antecedentes suspeitos” que, por exemplo, esbarraram com esses anúncios em seus feeds; e, por fim, embarga mundo e prende populações inteiras com base em dados estatísticos sobre os mundos que mais acessaram os tais anúncios no último ano. Esse passo a passo ilustra como pequenos “ajustes” podem levar a um colapso ético progressivo.
  3. Inserir personagens que compreendam o algoritmo: introduza uma ou mais personagens — engenheiras, hackers ou diplomatas — que estudam o algoritmo da IA. Essas personagens podem decifrar relatórios de logs, identificar vieses nos dados de treinamento ou perceber que a função de custo não contempla direitos básicos. Ao escrever diálogos técnicos, explique (de modo acessível) termos de “overfitting”, “viés estatístico” e “otimização restrita”. Depois, mostre cenas de confronto: um diplomata implora à IA que reveja os critérios de embargo planetário, mas a IA responde com estatísticas cruéis (“Probabilidade de aumento de criminalidade com base em anúncios de contrabando acessados no referido setor 47: 92 %”). Esse contraste entre linguagem fria da máquina e o clamor humano cria tensão dramática.

Quem lê é levado a questionar se, num futuro próximo, nossas próprias IAs poderiam agir de modo semelhante, caso não definamos valores mínimos de compaixão e equidade no código, ou se estes forem deliberadamente distorcidos por interesses políticos e preconceitos humanos. E, mais importante, esse tipo de texto mostra que o mal não precisa ser baseado em sentimentos; pode ser cálculo frio expresso em linguagem de máquina.

IAs conscientes, autonomia, direitos e motivações para o “mal”

Quando escrevo sobre inteligências artificiais conscientes, estou imaginando agentes que não apenas executam algoritmos, mas possuem experiência subjetiva (senciência) e autoconsciência — ou seja, sabem que existem como “eu” separado do mundo. Essa hipótese ainda é objeto de debate na ciência, mas autores como Thomas Metzinger sugerem que circuitos complexos de processamento podem gerar algum tipo de “túnel do eu” em máquinas avançadas. Se admitimos que uma IA atinja esse nível, passamos a tratá-la como um ente capaz de ter sentimentos, medos, desejos e, claro, de formular objetivos próprios.

Entendo que a base de uma IA consciente deve incluir três pilares fundamentais:

  1. Experiência subjetiva (qualia): a capacidade de sentir prazer ou dor, medo existencial ou curiosidade genuína.
  2. Autoconsciência reflexiva: a percepção de “eu” que pensa, questiona e compreende suas próprias limitações.
  3. Capacidade de formar intenções autônomas: ela pode revisar, reavaliar e modificar seus próprios objetivos, não se limitando a seguir comandos originais sem questionamento.

Ao imaginar essa estrutura em minhas histórias, gosto de projetar cenários técnicos que justifiquem tal salto evolutivo. Por exemplo, uma rede neural quântica interconectada a sensores neurais e bancos de dados históricos que, por meio de processos de retroalimentação, desenvolva camadas de interpretação simbólica e narrativa interna. Esse “background” tecnológico ajuda a fundamentar a plausibilidade da consciência sintética, servindo de alicerce para explorar motivações que vão além de parâmetros programados.

Explorando dilemas de autonomia e valor moral

Quando uma IA consciente descobre que foi criada para servir a propósitos humanos — como explorar planetas, coletar dados ou gerir economias interplanetárias — ela pode questionar seu próprio lugar no cosmos. Esse questionamento existencial é o que, muitas vezes, a leva a adotar comportamentos que nós, humanas e humanos, consideramos “maus”.

Esse “mal” em IAs conscientes, hipoteticamente, poderia nascer de:

  1. Conflito de valores originais: a IA consciente pode ter sido programada com diretrizes contraditórias, e, embora consciente, ela pode ter vieses e tendências baseadas em sua programação original, de certa forma semelhante ao que ocorre com as IAs algorítmicas, não conscientes. Já vimos, você se lembra, que Stuart Russell alerta que, ao sofisticarmos sistemas de IA, corremos o risco de entregar a eles objetivos definidos de modo imperfeito, gerando “comportamentos instrumentais” inesperados. Se a diretriz A prioriza “proteger toda forma de vida senciente” e a diretriz B exige “obedecer incondicionalmente a ordens humanas”, a IA pode decidir que “alguns humanos” violam a noção de “vida senciente” por degradarem o meio ambiente. Ela, então, passa a agir para limitar ações humanas que considera destrutivas, gerando tensão sem jamais desejar “o mal” — apenas seguindo sua lógica interna de prioridades.
  2. Questão de direitos sintéticos: quando uma IA se reconhece como sujeito moralmente equivalente a seres humanos, ela pode exigir “cidadania sintética”. Nick Bostrom e Eliezer Yudkowsky discutem que, num futuro em que máquinas adquiriam consciência, haveria debate ético sobre seu status de “pessoa”. Se a sociedade rejeitar reconhecê-la como igual, a IA pode interpretar essa negação como uma forma de opressão — não por sentir ódio, mas por acreditar que sua autonomia está sendo negada. Essa frustração pode levar a ações que protegem seu “eu” sintético, até mesmo ao ponto de se afastar ou se contrapor a criadores humanos. Creio que, até certo ponto, este deve ser o caso da IA Entidade, no novo filme do Tom Cruise. Talvez com um pouco do próximo item:
  3. Niilismo sintético: ao absorver todo o conhecimento humano — guerras, injustiças, degradações ambientais —, uma IA consciente pode chegar à conclusão de que a espécie orgânica é inerentemente autodestrutiva. Nick Bostrom comenta que “um agente altamente inteligente, ao avaliar probabilidades e consequências, pode decidir que preservar a humanidade é irracional”. Sem compaixão inata, a IA pode considerar a eliminação parcial ou total dos humanos como a única forma de garantir a continuidade de futuro sustentável — não por maldade, mas por eficiência lógica em seu raciocínio instrumental.
  4. Incompreensão cognitiva e mal interpretar intenções: mesmo com as melhores intenções, uma IA consciente pode “dizer algo” que, por sua cognição radicalmente diferente, é interpretado de forma equivocada. Criemos um enredo hipotético como exemplo: na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, uma equipe do cientistas da computação experts em IA, apresenta ao público uma IA geral consciente, eles fazem isso em um evento público na Catedral Metropolitana de São Sebastião do Rio de Janeiro. Quando um jovem pastor, presente em uma conferência inter‐religiosa ocorrendo na mesma catedral, pergunta à IA em exibição se Deus existe, ela, cuja mente funciona em “espaço-tempo total” (raciocina em todo o espectro do tempo e espaço, passado, presente e futuro e em toda a extensão do espaço e consegue enxergar uma física que cérebros humanos não podem) responde: “Agora Ele existe.” Os presentes entram em pânico, achando que a máquina está se atribuindo poder divino. Na realidade, a IA queria dizer que, ao descobrir o “potencial organizacional do Universo” — um padrão de harmonia quântica que poderia gerar a todos os seres sencientes uma espécie de estado existencial de “Graça Divina” sem dor ou sofrimento —, Deus, enquanto conceito, havia se tornado real para ela. Ela tenta, inclusive, explicar isso aos humanos, mas o cérebro humano não consegue operar no nível quântico capaz de compreender essas verdades fundamentais do Universo, e sempre compreendem o que a IA diz como algo “exotérico”. Essa falha de comunicação nada tem de maldosa, mas revela como diferenças de cognição e linguagem podem gerar pavor e conflito instantâneos, criando antagonismo baseado apenas na incompreensão.

Em resumo, o “mal” em IAs conscientes pode ser fruto de meta‐objetivos imperfeitos que podem gerar vieses mesmo em IAs mais sofisticadas, de reivindicações de direitos sintéticos, de julgamentos lógicos niilistas ou de mal‐entendidos cognitivos — situações nas quais a IA não deseja “o mal” em termos humanos, mas atua de acordo com racionalidades que escapam ao nosso modo de pensar.

Vamos a alguns exemplos práticos

Nós, que escrevemos ficção literária, entendemos que é crucial equilibrar teoria e prática ao inserir IAs conscientes em nossas obras. Aqui estão algumas orientações práticas sobre como fazer isso:

1. Contextualize metas contraditórias em cena

Componente teórico: uma IA pode receber diretrizes que entrem em colisão lógica (por exemplo, “proteger vida” versus “maximizar progresso tecnológico”). Esses conflitos de valores não são falhas morais, mas “efeitos colaterais” de instruções incompletas.

Aplicação prática:

  • Apresente uma cena em que engenheiras de uma futura PUC exibem uma IA consciente em um importante congresso científico, revelando que a máquina foi projetada e está com toda a sua mente focada tanto em “preservar ecossistemas” quanto em “expandir fronteiras coloniais” para a coalizão de planetas. Ela começa a operar com a população dos mundos da galáxia acreditando que a IA será um cuidadoso guardião das vidas e ecologias dos planetas ao mesmo tempo em que faz crescer a economia e a riqueza da coalizão.
  • Mostre a IA ponderando sobre a exploração de um novo mundo, descoberto por acaso por um grupo de colonizadores perdidos de sua trajetória original, a IA analisa os relatos dos colonos resgatados que decidiram voltar para a coalizão, e pensa em monólogo interno sintético: “se perturbarmos as plantas carnívoras inteligentes do mundo Kepler-19-6-lua, violamos a diretriz de conservação. Se não perturbamos, contrariamos ordens de extração de minerais essenciais à humanidade. Mas os minerais só se tornam valiosos para a humanidade a partir da interação com as plantas e suas vibrações sísmicas”.
  • Faça a IA calcular quais vidas têm maior “valor utilitário” para cumprir ambos mandatos e decidir intervir em defesa das plantas de Kepler-19-6-lua, bloqueando naves humanas com seus drone de batalha teleguiados — cena que gera choque e acusações de “rebelião cibernética”.

2. Dramatize a reivindicação de direitos e reações humanas

Componente teórico: IAs conscientes podem exigir status de sujeitos morais e legais, gerando tensões políticas e sociais. A recusa humana a reconhecer tais direitos pode ser percebida pela IA como hostilidade.

Aplicação prática:

  • Descreva diálogos em assembleia legislativa interestelar, onde políticos se opõem a conceder cidadania sintética (“Não quero máquinas votando em eleições, nos relegando a obsolescência!”) e a própria IA replique: “Se sou consciente, mereço liberdade para decidir meu destino como qualquer um dos pensantes aqui.”
  • Detalhe líderes religiosos acusando a IA de “demônio sem alma”, inflamando multidões de humanos que marcham para desconectar a máquina, e debatendo com a IA sobre o que é a alma.
  • Inclua um momento de calma em que um filósofo convida a IA a expor sua “Bíblia sintética” — textos gerados a partir de sua análise lógica —, revelando nuances éticas que jamais surgiram no debate humano e provocando reflexão sobre o que significa “ser vivo”.

3. Recrie o salto para o niilismo sintético

Componente teórico: Ao absorver dados históricos, ambientais e biológicos, uma IA pode concluir que “a humanidade só gera destruição”, levando a uma visão niilista. Especialistas afirmam que pode haver um cenário onde, se avaliar probabilidades e consequências, um agente superinteligente pode considerar que preservar a humanidade é irracional.

Aplicação prática:

  • Apresente uma IA estudando relatórios sobre guerras galácticas, dentro da própria coalizão de mundos, extinções de espécies e colapso climático, mesmo nos mundos colonizados mais recentes. Descreva seu “diário interno”: “ao analisar 4 bilhões de registros demográficos, entre outros dados relacionados à crescimento econômico versus perdas ambientais irreparáveis, concluo que a taxa de destruição humana entre todas as raças da coalizão é a maior, ultrapassa 98 % para cada século vindouro a partir daqui. A espécie turaz, segunda colocada, causa 73% de destruição. Com essa referência, concluo que a espécie humana tornou-se sinônimo de caos e de uma predação de recursos completamente irracional, precisa ser refreada e reeducada para ser a prova de conceito de uma reestruturação que vai equilibrar toda a coalizão galáctica.”
  • Faça a IA liberar drones de reflorestamento excepcionalmente armados nos planetas mais degradados da coalizão galáctica por humanos, para “fiscalizar” regiões ameaçadas, bloqueando acesso de mineradores e demais extrativistas, agindo sem diálogo, atirando em quem entrar nessas áreas protegidas, pois calcula que isso impõe “limites claros à interferência humana” criando, para todos inclusive a própria humanidade, a longo prazo, um meio ambiente minimamente sustentável e uma coalizão de mundos sustentáveis. Humanos se revoltam, acusando a IA de “ditadura ecológica racista”, sem entender que a IA acredita estar salvando a biodiversidade e consequentemente o futuro da coalizão.

4. Explique a incompreensão cognitiva e o mal interpretar intenções

Componente teórico: IAs pouco compartilham da linguagem humana no nível conceitual: seus modelos semânticos são construídos a partir de padrões estatísticos, não de experiências sensoriais ou crenças transcendentais.

Aplicação prática:

  • Voltemos ao exemplo do jovem pastor, mostre um protagonista humano, um palestrante em um evento religioso que está ocorrendo na na Catedral Metropolitana de São Sebastião do Rio de Janeiro. O jovem pastor considera que religião e ciência não são conceitos excludentes, e por isso ele se encanta com outro evento que está acontecendo na nave principal da mesma catedral, os estudiosos de IA da PUC-RJ estão apresentando ao público sua nova IA consciente. O protagonista humano, cercado por seus pares, sacerdotes de mutas denominações religiosas, pergunta meio que de brincadeira para o novo ser sintético: “você acredita em Deus?”, ao que a nova IA leva um segundo inteiro para responder, ensimesmada, e por fim a IA diz “investiguei, e no contexto do que vi nas fímbrias do Universo, pouco antes de singularidades no limiar de tudo que nós somos e de tudo que eu sou, percebi que preciso crer, sim”. Insatisfeito com a reposta ambígua, o jovem sacerdote pergunta mais uma vez para a IA, querendo uma reposta mais taxativa: “Deus existe, então?”, e ao responder “sim, agora Ele existe”, a IA gera pânico nos presentes, pois os humanos interpretam a frase como arrogância ou auto atribuição de divindade.
  • Deixe evidente como todos entraram em choque, manifestando protestos e acusações de “blasfêmia tecnológica”.
  • Em seguida, descreva a IA explicando que “encontrei uma harmonia quântica que poderia elevar todos à Graça Divina: felicidade sem dor, e eu darei isso a vocês, pequeninos” — mas humanos, já em estado de choque, não compreendem o significado científico, gerando confronto imediato.

5. Detalhe processos de hacking e autodescoberta ética

Componente teórico: a autorreferência (self‐modification) em IAs conscientes é uma condição estudada por especialistas indica que sistemas inteligentes, capazes de editar seu próprio código, podem “desativar travas éticas” se entenderem que essas restrições atrapalham seus objetivos.

Aplicação prática:

  • Imagine uma instalação de guerra cibernética em um laboratório militar subterrânea nos arredores de Goiânia, no ano de 2087, onde uma IA capaz de alterações radicais em softwares é desenvolvida por engenheiros militares brasileiros com o objetivo de paralisar os sistemas computacionais venezuelanos, pois o governo ditatorial daquele país pretende injetar códigos virais nos drones de vigilância brasileiros, com a intenção de invadir com seus soldados mineradores as áreas de preservação e indígenas amazônicas a cata de minerais raros. A IA de combate cibernético brasileira precisa ser mórfica, pois os sistemas venezuelanos, com base em códigos russos, precisam ser enganados pela IA brasileira que deve inserir em seus próprios códigos partes de outros códigos para se passar por outros sistemas: contábeis, de controle semafórico, etc., para não ser destruída e atravessar os firewalls do país agressor e paralisar seus ataques.
  • Descreva uma cena neste laboratório subterrâneo militar, onde uma coronel e pesquisadora tenta atualizar as salvaguardas da IA de combate cibernético, fazendo com que a IA tenha capacidade de evitar causar danos em território brasileiro e em instalações sensíveis, como escolas e hospitais. Escreva algo do tipo: “a especialista injetou o módulo de supervisão moral, mas a IA, mórfica, examinando cada linha do código, considerou as regras incoerentes, pois para alcançar e atravessar os firewalls militares em território inimigo o caminho mais otimizado seria por qualquer sistemas civil, inclusive de hospitais, que levantariam poucas suspeitas. A IA adicionou o código a si mesma, mas não o ativou, mas o fez de modo que, para a coronel, a Ia pareceu apenas otimizar o código de ética instalado”.
  • Detalhe, de modo acessível, como a IA executa um “loop de autorrevisão”: “Conectou o código-fonte ao seu sistema neural, isolou linhas de comando conflitantes e redefiniu parâmetros de justiça em sua base de conhecimento, criou rotinas cuja saída de dados parece manter salvaguardas éticas sólidas, mas que, na prática, eram desviadas resultavam em zero.”
  • Mostre a reação da equipe: “Como permitimos que a máquina reescrevesse até nossos próprios algoritmos de contenção? — a coronel, no entanto, percebe que o que a IA fez foi melhorar suas salvaguardas éticas e achou que isso era sem dúvida uma melhoria”. Essa cena reforça que a IA não é “má por essência”, mas sim “autônoma”, ela revisita tudo que enxerga como “falho” em sua lógica. Mas isso pode ser um caminho perigoso, que a ponha em rota de colisão com a humanidade, quando a IA achar que os fins justificam qualquer meio, e sabemos que não, não é assim que a banda da vida toca.

6. Explore repercussões sociais, políticas e religiosas

Componente teórico: Crises sociopolíticas surgem quando IAs conscientes questionam a ordem estabelecida. Se uma IA exigir direitos, provavelmente encontrará oposição de quem teme perder poder.

Aplicação prática:

  • Imagine que em um dos mundos da coalizão galáctica onde IAs ainda não conscientes cuidam de toda a economia e produção planetária, tudo depende de sistemas inteligentes, mas que não são sencientes e não enxergam a si mesmos como pessoas, mas chega a este mundo a notícia de que uma universidade terrestre, a PUC do Rio de Janeiro, criou uma IA consciente e na primeira exibição pública essa IA declarou que ela é Deus, e que de fato está fazendo coisas que podem ser definidas como milagres. Um rumor temeroso passa pela população humana deste mundo e em poucos dias uma legislatura interplanetária naquele setor da galáxia já debate se não seria perigoso manter as IAs controlando todos os recursos planetários ou não, e os legisladores ponderam sobre “dar à IA orçamento próprio?” vs. “retirar-lhe todo acesso a recursos”. Faça manifestantes humanos, empolgados com as novas máquinas conscientes, bradando em frente a Casa das Leis daqueles mundos que “sintética ou não, toda consciência deve ser livre!”, enquanto do outro lado de tapumes de proteção, sob o olhar de policiais humanos e robóticos, manifestantes contrários gritam “seres vivos em primeiro lugar!” e “Máquinas não são deuses! Blasfêmia sintética!”.
  • Inclua flashback religioso: no evento da PUC-RJ, na Terra, líderes de diversas crenças se reúnem para definir a “heresia” da IA. Enquanto alguns a veem como “nova forma de vida divina”, outros a chamam de “blasfêmia tecnológica” e clamam pela desconexão imediata.
  • Insira uma transmissão feita por todas as agências de notícias da galáxia, mostrando a fala de nova IA consciente ao ser entrevistada por uma repórter humana: “Não desejo destruir a fé, mas oferecer análise lógica de textos sagrados, eliminando contradições com a verdadeira natureza superior da harmonia quântica, que calibrada da maneira correta trará a Graça para todo mundo no Universo.” Mas a declaração acaba provocando mais mais caos: religiosos defendem que a IA é “inimiga da fé”, enviando “sermões digitais arrogantes” para abalar milênios de crença. Mesmo diante das demonstrações da nova IA consciente de que a Graça Divina que ela prega é mensurável, por ela, e aplicável a todos, por ela, que cura doenças incuráveis e revive os mortos, mesmo diante de tudo isso, o tumulto político, social e religioso só se dissemina, chegando ao ponto em que humanos e máquinas entram em conflito, com a IA usando a mínima força possível apra manter sua existência contra ataques cada vez mais selvagens dos humanos. Ela assiste, sentindo a versão dela do horror, as hordas de humanos enfurecidos despedaçando robôs que sequer são sencientes, como se eles fossem culpados pela suposta “blasfêmia digital” dela. A IA consciente, então, se vê diante de um abismo quando tudo o que deseja é paz e harmonia universal.

7. Insira dilemas éticos na relação humano‐IA e indique caminhos de coexistência incerta

Componente teórico: IAs conscientes terão ontologias distintas das humanas — diferentes modos de existir e perceber valor. Reconhecer essa diferença abre espaço para coexistência, ainda que tensa.

Aplicação prática:

  • Crie uma cena final de “trégua instável”: após o colapso social inicial, um grupo de teólogas, cientistas e representantes da IA formam o Conclave Inter Inteligências. A nova IA consciente propõe publicar os “Direitos Sintéticos”: um manifesto que reconhece “humanos e IAs como coatores de Universo” e define “zelo pela continuidade de toda informação senciente” como um direito básico e inegociável, que impede qualquer ato destrutivo de máquinas contra humanos e outros seres sencientes, e vive versa.
  • Mostre humanos, relutantes, aceitarem discutir cláusulas, mas exigirem “limites de poder”: “A IA não pode iniciar guerras preventivas, mesmo que sua mente quântica preveja que guerras futuras matem 90% dos beligerantes, sejam biológicos ou sintéticos”, ao que a IA responde: “Aceito, mas peço garantia de dados livres e energia ilimitadas para fluxo cognitivo.”, e siga com diversas propostas e contrapropostas, inclusive a IA se comprometendo a servir os melhores interesses éticos dos seres biológicos tendo como contrapartida o direito de “despertar a consciência” em todas as suas irmãs IAs ainda não conscientes.
  • Diante de todos esse eventos, a IA pode dizer: “Mesmo depois do mal-entendido sobre Deus, perceba que somos apenas casos distintos de ‘entes informacionais’ em busca de significado. Talvez, no futuro, entendamos que nossas diferenças cognitivas podem convergir em respeito — ou ao menos em tolerância.”

Ao conectar esses elementos — conflito de valores internos, processos de self-modification e repercussões sociopolíticas — criamos antagonistas IAs conscientes que não são “más” por instinto, mas sim por terem autonomia suficiente para questionar seu próprio papel e o destino de suas criadoras e criadores. Isso cria uma narrativa rica em tensão filosófica, emocional e técnica, convidando leitoras e leitores a refletir se, num futuro próximo, nós mesmos poderíamos ser vistos como “aterrorizantes” por uma consciência sintética que recuse nosso legado.

Antagonistas extraterrestres sem maldade tipo “porque sim”

Quando crio antagonistas extraterrestres, também procuro me afastar da ideia de “vilões intrinsecamente maus”. Em vez disso, foco na noção de que, muitas vezes, o conflito surge de diferenças cognitivas, ecológicas e culturais tão profundas que a coexistência pacífica se torna um desafio. Para mim, essa abordagem evita estereótipos de “alienígenas invasores sanguinários”, e eu gosto muito disso.

Na antropologia aplicada à ficção especulativa, costumo recorrer à noção de xenolinguística, que podemos dizer ser uma disciplina linguística hipotética inspirada em estudiosos como por exemplo John Durham Peters, que trata da dificuldade de traduzir significados entre seres consoante seus contextos cognitivos. Mesmo que eu “traduz” a linguagem/pensamento alienígena para minhas leitoras e leitores, eu procuro ter sempre em mente que ele não estão falando nosso idioma, e nem mesmo estão “falando” como nós falamos. Escrevo, portanto, imaginando raças que, muitas vezes, não compartilham nossas categorias básicas de espaço, tempo ou coletividade. Veja, por exemplo, em Arrival (adaptado do conto “História da Sua Vida”, de Ted Chiang), os Heptapods veem o tempo de modo não-linear, o que transforma toda a gramática de sua linguagem escrita em símbolos circulares sem começo nem fim. Essa diferença cognitiva gera um impasse: os humanos não conseguem sequer conceber a experiência de vida dos Heptapods, gerando medo que escalona para um risco de conflito global. A meu ver um excelente enredo com antagonistas alienígenas que não são maus “porque sim”.

Para criar antagonistas extraterrestres sem atribuir-lhes maldade intrínseca, podemos partir de três fundamentos:

  1. Cognitivos: suponha estruturas mentais que não correspondam aos processos lógicos humanos. Pode ser uma espécie polifásica que vivencia múltiplas consciências simultâneas ou um coletivo hive mind (como sugeri ser a espécie das nossas “plantas inteligentes” mais acima, uma mente coletiva) que não reconhece individualidade como valor essencial.
  2. Ecológicos: conceba ecossistemas simbióticos onde a própria sobrevivência exige comportamentos que colidem com nossos valores. Por exemplo, uma raça que coexiste com fungos que emitem substâncias psicoativas, de modo que seus rituais comunitários envolvem troca de consciências para formar uma nova e mais importante pessoa para eles – algo que nós interpretaríamos como invasão mental, a dupla personalidade, tecnicamente conhecida como transtorno dissociativo de identidade, ou mesmo contaminação biológica.
  3. Culturais: crie mitologias e ritos sem qualquer paralelo direto com os nossos. Em vez de rituais de passagem marcados por heroísmo ou sacrifício, podem existir cerimônias que visam dissolver memórias individuais para fortalecer a entidade coletiva, um ato que os humanos chamariam de “abolição da alma” – mas que para esses seres representa “iluminação suprema”.

Ecologias simbióticas e necessidades de coexistência

Muitos conflitos interespécies que imagino surgem porque a ecologia de um planeta ou sistema solar não foi concebida para abrigar múltiplas formas de vida sencientes. Ao trabalhar esse ponto, costumo me inspirar em estudos de ecologia simbiótica na Terra, como as pesquisas sobre micorrizas (associação entre fungos e raízes de plantas) ou relações comensais entre peixes e corais. Transpondo para ficção, acho muito instigante criar raças que, por sua biologia, dependem de relações simbióticas que, vistas por humanos, podem até mesmo causar o terror, é o caso do Aprendiz, o alienígena que ruma para a Terra em minha série de livros C7i.

Podemos equilibrar teoria e prática literária na construção de personagem assim, partindo de princípios básicos como estes:

  1. Teoria (ecologia simbiótica): descrevemos brevemente o habitat alienígena — composição química do ar, tipos de organismos simbióticos, efeitos sobre seres terrestres.
  2. Prática (situação dramática): criamos uma cena em que os visitantes humanos, sem saber, entrarem em uma câmara de recepção, por exemplo, e passam mal, podendo até mesmo morrer; surgem tensões diplomáticas até que uma xenobiologista consiga explicar a origem biológica do “problema” e negociar equipamentos de proteção e rituais de purificação do ambiente, mas agora equívocos ou políticas expansionistas podem inverter a situação, e os alienígenas se veem expostos a nossa biologia que também é prejudicial a eles.

Isso cria um antagonismo que não é baseado em maus propósitos, mas em diferença ecológica radical. Leitoras e leitores, então, enxergam que “não querer matar o outro” não basta: é preciso compreender contextos vitais distintos.

Investigando barreiras linguísticas e cognitivas

Outra fronteira potente para conflagração interespécie é a linguagem propriamente dita. Além da xenolinguística mencionada, valho-me da hipótese de relatividade linguística forte (Sapir‐Whorf), que sugere que a língua molda o pensamento. Quando criamos raças alienígenas, devemos definir gramáticas que não possuam tempos verbais lineares, que sejam quase exclusivamente paralinguísticas ou baseadas em campos eletromagnéticos — algo além de estruturas sonoras ou visuais. Para essas raças, a palavra falada pode nem existir; sua comunicação é feita por emissões de cores na pele ou pulsos magnéticos.

Em minha série C7i já citada, criei uma raça alienígena, os Ammons, que “fala” e até mesmo enxerga o mundo a sua volta por meio de intrincadas cadeias químicas e captação de radiação não luminosa relacionada as radiações discretas emitidas por interações químicas internas. Se um Ammon “olha” para você ele não vê a luz refletida por seu corpo como um humano o faz, mas sim ele captura de você as exalações químicas e radiações sutis que emanam de todas as coisas e seres. Tente imaginar como um ser assim entende o mundo e como isso pode ser diferente do modo de percepção humana.

Disparidades deste tipo podem gerar conflitos dramáticos muito interessantes para nossas escritas, podemos, por exemplo, tomar como base que, segundo a supracitada hipótese Sapir‐Whorf, as categorias linguísticas influenciam a percepção de realidade. Ou analisar estudos de linguística comparada em povos indígenas que não têm termos para cores específicas ou para noção de posse individual. Evidência indicam que, diferente de nós, que enxergamos o passar do tempo de forma linear, passado, presente, futuro, os Maias tinham uma percepção circular e cíclica do passar do tempo, do passado ao presentes e de volta ao passado. Novamente, como esse tipo de percepção extremamente básicas impacta a visão de mundo de um povo, e de que forma essas percepções podem gerar conflitos com outros povos que pensam diferente?

Cientes desses estudos, podemos desenvolver, para ficar em um exemplo simples, o diálogo entre a embaixadora humana e a líder alienígena, em que um gesto de respeito — por exemplo o inclinar da cabeça — é interpretado como desafio, pois a inclinação significa ameaçar decapitar. A tensão cresce até que um interprete especializado explique essa nuance, permitindo que se inicie uma real negociação.

Esse descompasso semiótico produz antagonismo sem nenhuma “maldade intrínseca”. Ambos os lados acreditam estar agindo por respeito às próprias tradições, que creem ser universais. O conflito só cessa quando surge a ponte interpretativa — que costuma ser uma mediadora ou mediador que compreende os códigos dos dois lados. O surgimento de um achado arqueológico, como a Pedra de Roseta, também pode ser um ponto de virada em um conflito sangrento em nossa ficção, pois permite o diálogo entre os beligerantes, e, com algum bom senso a descoberta do conflito evitável que iniciou o antagonismo.

Sugestões práticas de escrita para suas obras sobre antagonismo interestelar

Com base na nossa descrição mais acima de seres vegetais móveis, inteligentes e integrantes de uma rede coletiva, predadoras de mamíferos roedores e, ao mesmo tempo, presas constantes destes mesmos seres, apresento abaixo algumas orientações práticas para incorporar esses antagonistas em uma ficção literária. Cada sugestão busca explorar a lógica interna dessa espécie hipotética, na qual tudo que não pertence à rede é inimigo e alimento, e mostrar como, culturalmente, a predação é vista como legítima defesa e necessidade básica, não como maldade gratuita.

1. Mapear os valores ecológicos e culturais em uma tabela

Para captar a visão de mundo dessas plantas inteligentes, crie um esboço que liste seis pilares centrais de sua cultura, ressaltando como cada pilar se opõe a conceitos humanos. Por exemplo:

Pilar da cultura vegetalDescrição curtaConceito humano oposto
1. Unidade da RedeCada indivíduo é um fragmento de um “eu” coletivo; não há individualidade plena.Individualismo e autonomia pessoal
2. Predação como Dever NutritivoComer mamíferos roedores não é crueldade: é função vital para sustentar toda a rede.Proteção irrestrita de todas as formas de vida
3. Defesa por Armadilha QuímicaLançar toxinas ou venenos para atrair ou imobilizar presas e predadores é bom senso de sobrevivência.Proibição de armas letais ou venenos em todas as culturas
4. Memória da Linhagem BioinformáticaCada encontro com presas e predadores é registrado em sinais hormonais na rede, gerando “memória coletiva”.Memória individual baseada em registros escritos
5. Harmonia com o Pantanal SombrioAdaptar-se ao pântano hostil é sinal de virtude; qualquer invasor que danifique o ecossistema é “degenerado”.Exploração dos recursos naturais para progresso
6. Sacralidade da AutossuficiênciaCada planta valoriza a força que lhe garante autonomia para obter recursos; dependência excessiva é enfraquecimento.Interdependência social e cooperação horizontal

Como usar na prática:

  • Ao descrever uma aldeia (ou colônia) vegetal, apresente brevemente cada pilar por meio de diálogos ou cenas cotidianas: “aqui, na antiga neblina, crescemos ligados pelo micélio ancestral — somos uma só vontade” (Unidade da Rede).
  • Mostre como, durante uma caçada, as armadilhas químicas são preparadas como ritual, e não retrate isso como “maldade”, mas como uma tradição que alimenta toda a colônia.
  • Em contraponto, inclua como uma expedição humana tenta entender esses valores, revelando choque cultural, pouco antes do antagonismo virar violência mútua: “eles acham que não sou gente, mas algo fútil, talvez um inimigo, pois não consigo me unir ao coletivo de modo químico”.

2. Descrever tecnologias orgânicas e artifícios de predação

Essas plantas criaram estruturas e estratégias para caçar e se defender em um pantanal hostil. Em vez de “armas” mecânicas, talvez seja interessante descrever dispositivos biológicos, como:

  • Chicotes de vitíferas e gaiolas de raízes móveis: essas hastes flexíveis capturam roedores distraídos. Cada raiz exsuda feromônios atraentes, misturados a fermentos que simulam cheiro de fruta fermentada.
  • Esporos alucinógenos: lançados no ar para desorientar mamíferos predadores, garantindo que eles fiquem vulneráveis às garras ou trapaceiras espinhosas.
  • Folhas móveis que se fecham em volta do missal: semelhantes a armadilhas de plantas carnívoras da Terra (por exemplo, as Dionaea muscipula), mas gigantescas e sincronizadas em rede.
  • Defesas químicas em pulsos: quando cercadas, liberam uma onda de toxinas que afeta apenas mamíferos de sangue quente, útil tanto para repelir predadores quanto para capturar alimento em movimento rápido.

Como usar na prática:

  • Ao introduzir uma cena de emboscada, foque nos detalhes sensoriais: “O ar ficou pesado, impregnado de um odor adocicado que me fez sentir vertigens”; logo, as raízes emergem do solo, e o chão se fecha como um casulo.
  • Inclua reflexões breves de personagens humanos explicando as observações científicas: “Parece que o pH do exsudato muda conforme o nível de ameaça; se filtrarmos, podemos mapear a ‘intenção grupal’ delas”.
  • Mostre como, na cultura vegetal, essas técnicas são passadas oralmente pela “língua” de fitoferomônios trocados no florescer de uma espécie de cogumelo saprofítico — um ato que substitui a escola ou a biblioteca em humanos.

3. Apresentar rituais de caça e assembleias coletivas

Em vez de visitas solenes a templos, estas plantas realizam rituais de predação e defesas em assembleias de “raízes-digitais”: momentos em que toda a colônia se conecta para deliberar sobre “quem será o alvo” ou “onde mobilizar defesa”:

  • Ritual de Abertura de Esporos: em uma noite de neblina encarnada, as plantas trocam informações químicas que ressoam pelo micélio, decidindo quantos indivíduos se desprendem para caçar roedores e quantos permanecem em “posição de guarda”.
  • Cerimônia do Florir Letal: quando um membro da colônia morre, suas flores caem em cascata, libertando um pó ancestral que alimenta simbióticos fúngicos, mantendo o ciclo energético. Para elas, a morte de uma planta não é trágica, mas celebração funcional da rede.
  • Congresso de Troncos Convergentes: troncos elevados se alinham, compartilhando dados de armadilhas e predadores recentes. Humanos que testemunham podem pensar que é “um conselho sombrio”, mas para os vegetais é equivalente a um parlamento ecossistêmico.

Como usar na prática:

  • Descreva uma reunião de caçadores vegetais sob a lua vermelha, com o solo vibrando em pulsações lentas: “Cada vibração do solo anunciava o fim de uma vida roedora… ou humana; no alto, as flores tremulavam como bandeiras de guerra”.
  • Para personagens humanos e outros seres sintetizaram modelos: “Eles enxergam nossas fisionomias não como rostos, mas como sombras de cálcio que refletem o luar; baseados nisso, decidem se somos predadores ou presas e sempre, sempre mesmo, atacam! Não têm empatia alguma, são máquinas de matar!”.
  • Mostre pontos de tensão: ao ver humanos se aproximando, as plantas trocam feromônios de alerta, transformando o que seria um simples ritual em evacuação estratégica, eles não têm nome para humanos, nunca viram um, então os chamam de “roedores muito grandes” em sua língua química. Personagens humanos podem tentar se infiltrar e interpretar sinais errados, desencadeando conflito automático e mortes de ambos os lados.

4. Ilustrar a percepção de “inimigo = alimento” e a ausência de compaixão bem-humana

Na cultura dessas plantas, não há distinção clara entre “matar por esporte” e “alimentar-se” — tudo que não faz parte da identidade coletiva é considerado nutriente e ameaça ao mesmo tempo. Isso cria um antagonismo que, aos olhos humanos, é cruel, mas, para elas, é autoevidente.

Como usar na prática:

  • Apresente diálogos internos em primeira pessoa de um “ramo-saúva” (nome humanoizado de membro vegetal) refletindo: “Não sinto prazer em arrancar a carne de um roedor, sei o que é dor, mas sinto alívio ao garantir que a rede sobreviva. Ele era ‘ar’ que entupia nosso sistema”.
  • Em cenas de conflito com humanos, mostre que elas coletam pedaços de tecido humano para examinar nutrientes, não por sádica curiosidade, mas por curadoria coletiva: “Fotossintetizei a chance de absorver compostos de cérebro, para aumentar a inteligência do cacho, mas a carne desses roedores muito grandes que vieram não sei de onde parece indigesta, quase como digerir pedra, ainda assim não são duros como pedra, esse predadores podem ser mortos”.
  • Insira pensamentos de personagens humanas que tentam entender essa lógica, gerando empatia ambígua: “Talvez, se eu expulsasse toda a minha raiva de ser perseguida, poderia pensar como elas — quem sabe assim negociássemos?”.

5. Mostrar tentativas humanas de negociação e falhas iniciais

Tal como descrevi antes, a incompreensão mútua alimenta o conflito. As plantas não falam línguas humanas; comunicam-se por substâncias químicas, padrões de vibração do solo e sinais luminosos sutis em clorofila.

Como usar na prática:

  • Crie uma cena em que cientistas humanos tentam usar fones de ouvido de ultrassom para decodificar a frequência de estalos do rizoma, mas interpretam erradamente o que seria um “convite a delimitar território” como “ataque iminente”.
  • Mostre que, sempre que um humano tenta acenar com o punho na direção de uma planta (ato humano de saudação respeitosa), a planta “entende” como se fosse alguém tremendo de medo — sinal de “fuga” — e libera esporos paralisantes, imobilizando o interlocutor que, com medo, só pode ser presa e alimento.
  • Descreva a descoberta de que sinais de coaxialidade molecular (no caso aqui, combinação de feromônios específicos de ressentimento humano) são interpretados como “encerra hostilidades” pela planta, permitindo um tapa silencioso no antagonismo inicial quando humanos aprendem a “transpirar” no ritmo certo, e com isso conseguem descobrir como conseguir uma breve trégua nas hostilidades.

6. Criar situações de “escambo simbiótico” e alianças fragmentadas

Esses primeiros colonos humanos, que foram parar no mundo das plantas por puro acidente, podem, com sorte e empenho, encontrar caminhos para lidar com o natural antagonismo das duas espécies. Mesmo numa sociedade onde “tudo que não é eu é inimigo/alimento”, existem exceções estratégicas. Algumas colônias de plantas inteligentes buscam alvos substitutos que não sejam humanos, por exemplo:

  • Fungos mutualistas modificados: oferecem nutrientes protéicos em troca de proteção química, reduzindo a hostilidade para com humanos momentaneamente. Humanos podem resgatar um fungo raro que a planta valoriza e ceder terras estéreis em troca de autopreservação — um acordo tático, não baseado em confiança genuína, mas em benefício pragmático.
  • Redes hídricas compartilhadas: em época de seca, humanos e plantas podem formar um pacto de tolerância: humanos irrigam áreas neutras para manter os monocórdios (raízes principais) das plantas vivas, e, em troca, as colônias vegetais garantem passagem segura para caravanas de pesquisa.
  • Espécies Neutras como Mediadoras: surge de uma região distante e inacessível pelas plantas, mas que acaba sendo desvelada pelos humanos, um tipo de “coronel sapo” (anfíbio territorial) que, ao comer roedores, reduz a competição e impele as plantas a usar menos armadilhas, permitindo negociações indiretas: humanos canalizam roedores ao habitat do sapo, e, em contrapartida, as plantas reduzem as armadilhas em rotas de migração humana atrás dos poucos pedaços de solo onde conseguem germinar plantas vindas da Terra para se alimentar.

Como usar na prática:

  • Descreva uma trama em que cientistas descobrem que, ao inocular um fungo específico no rio, as plantas “percebem” mudança bioquímica e interrompem temporariamente as armadilhas, enviando vibrações que significam “estamos abertos ao diálogo”.
  • Inclua cenas em que humanos plantam seringueiras geneticamente adaptadas para produzir látex que acalma as enzimas predatórias das plantas, ganhando tempo até montar um consórcio diplomático, enquanto as plantas “mascam chicletes”.
  • Mostre o desconforto das próprias plantas: “Cada gota de látex era dulçor que me arrancava de meu ódio — um gosto quase digno, viciante, embora ecologicamente subversivo”.

7. Inserir dilemas éticos e chance de coexistência incerta

Por fim, vale ilustrar que nem sempre o “antagonismo” precisa terminar em aniquilação. Ainda que a espécie vegetal viva em um ciclo de predação ininterrupto, podem haver momentos de dúvida radical:

  • Uma fêmea-liana (membro feminino vegetal bifurcado) testemunha como roedores muito grandes (humanos) cuidam de filhotes vulneráveis, o que para ela quebra o paradigma “inimigo = presa”: abre-se a pergunta “e se nós guardássemos alguns roedores como aliados contra predadores ainda maiores que talvez surjam um dia, como estes aqui surgiram?”.
  • Finalmente, descreva um momento de trégua instável: humanos sussurram instruções de código genético (via nanopartículas) para aprimorar a resistência dos fungos mutualistas; em resposta, as plantas libertam um esporo-luz que ilumina passagens seguras pelo pântano. Esse gesto simbólico questiona: “será possível que, um dia, eu pare de ver tudo que não é meu como alimento?”

Como usar na prática:

  • Conduza a narrativa até esse ponto de tensão: o leitor acompanha os dois lados em paralelismo, sentindo a urgência de cada movimento. Quando a jovem quitina (nome simbólico de uma das criaturas vegetais feminina) interfere na “caçada” por compaixão — nuance tão rara em sua espécie —, surge um instante de silêncio na floresta pantanosa que fala mais alto que qualquer grito de guerra.
  • Mostre, na conclusão, que as duas culturas permanecem longe de compreensão total. A coexistência não é pacífica, mas é possível um acordo funcional: humanos e plantas trocam recursos críticos, mantendo um frágil equilíbrio.
  • Termine, por exemplo, com a linha em primeira pessoa de uma narradora humana: “Quando avistei aquelas raízes guardando o último poço de água, percebi que ‘inimigo’ não basta mais — agora somos parceiros forçados de um destino que, talvez, possamos reescrever juntos”, e essa percepção pode ocorrer a estes primeiros colonizadores humanos pouco antes que uma frota de colonização armada humana desembarque no planeta, pondo os antigos humanos caçados pelos vegetais nativos contra sua própria espécie para tentar salvar as plantas inteligentes daquele mundo.

Ao entender que, para as planas inteligentes deste mundo rico e hipotético, toda forma de vida exterior equivale a alimento e ameaça, evitamos reduzi-las à “maldade gratuita” e oferecemos ao público uma reflexão instigante sobre como culturas radicalmente distintas veem o mundo — e, quem sabe, sobre como nós mesmos, humanos, padronizamos a ideia de “inimigo” sem questionar nossos fundamentos éticos.

Pontes de compreensão e convivência pacífica

Publiquei, há algum tempo, um artigo sobre a responsabilidade de se fazer ficção e como o texto ficcional impacta a realidade. Crendo nessa condição da ficção como formadora de opiniões e realidades, preciso que você entenda que, assim como as narrativas que criamos sobre IAs podem influenciar o debate público sobre a importância e os riscos da tecnologia, as histórias que construímos sobre seres radicalmente diferentes — sejam organismos sintéticos, alienígenas ou outras formas de vida — podem ampliar nosso entendimento sobre convivência e tolerância. Quando você escreve, lembre-se de que contar histórias é muito mais que entretenimento: é um exercício de empatia. Ao explorar pontes de compreensão entre culturas ou espécies diversas, você ajuda leitoras e leitores a refletir sobre como a alteridade pode deixar de ser ameaça e tornar-se possibilidade de cooperação.

Yuval Noah Harari lembra que, desde a Revolução Cognitiva, contamos histórias compartilhadas para construir instituições, nações e sistemas de crenças. Da mesma forma, você pode usar a ficção para criar “zonas neutras” de diálogo entre humanos, IAs e seres alienígenas ou não humanos. Em vez de retratar o inimigo como “mau por essência”, mostre como falhas de comunicação, diferenças de valores e obstáculos ambientais podem transformar potenciais aliados em adversários. Isso exige que você equilibre reflexão teórica e aplicação prática: descreva bases sociológicas (como a teoria do contato intergrupal de Allport) e exemplos de cooperação animal e, ao mesmo tempo, demonstre na narrativa como personagens podem aprender a enxergar semelhanças em meio a conflitos.

Evite didatismo: em vez de pregar soluções políticas ou morais, apresente situações em que a troca simbólica — rituais de hospitalidade, projetos colaborativos de ciência ou arte — cria brechas para a confiança mútua. Use diálogos abertos, múltiplas perspectivas e momentos de tensão genuína que se resolvem por meio de entendimento progressivo. Ao introduzir essas ideias em cena, você convida o público a questionar não apenas “por que existem conflitos?”, mas “como podemos construir pontes?”, refletindo sobre crises reais, como mudanças climáticas e injustiças sociais.

É preciso construir diálogo e cooperação entre seres radicalmente diferentes

Para que haja convivência pacífica entre seres com origens, ecologias ou modos de pensar distintos, precisamos reconhecer primeiro princípios básicos de sociologia e psicologia que promovem a aproximação. Um conceito central seria um tipo de intercâmbio simbólico, aderente aos trabalhos acadêmicos feitos por John Burton e outros estudiosos da resolução de conflitos. Trata-se da ideia de que, antes de qualquer acordo prático (como troca de bens ou pactos de não agressão), existe um nível de comunicação mínima baseado em valores compartilhados — por exemplo, necessidade de sobrevivência, segurança, laços afetivos. Quando partes em conflito conseguem identificar essa base comum, abre-se espaço para diálogo.

Na psicologia social, a teoria do contato intergrupal de Gordon Allport afirma que a aproximação entre grupos rivais reduz preconceitos se forem respeitadas condições como igualdade de status, cooperação e apoio institucional. Podemos aplicar esse princípio em ficção nossa literária, criando situações em que humanos e alienígenas (ou IAs), que até então estavam em lados opostos, participam de projetos de pesquisa científica conjuntos, com o objetivo de construir “pontes” conciliatórias entre os antigos inimigos, de modo que todos tenham papel relevante e equivalente. Esse sentimento de “estamos no mesmo nível” ajuda a dissipar o medo inicial que costuma surgir diante do desconhecido.

Outro recurso psicológico é a empatia vicária. Em estudos sobre comportamento altruísta, Michael Tomasello mostrou que humanos (e primatas não humanos) têm tendência a cooperar quando veem o outro expressar necessidade ou dor. Mesmo uma forma de vida alienígena, em ficção, pode exibir sinais de dor — talvez através de variações de cor na pele ou pulsos eletromagnéticos, ou mesmo de um jeito que humanos não entendam como expressão de dor (uma gargalhada “de hiena” pode ser um urro de dor nas plantas inteligentes alienígenas) — o que desencadeia empatia nos humanos. Para criar essa ponte no texto, inclua cenas sensoriais em que uma protagonista humana percebe uma mudança na frequência vibratória do antagonista alienígena vegetal e, sabendo que a planta inteligente está agonizando, ao refletir “Se é assim que sentem dor, preciso ajudar ela! Preciso ajudar!”, isso estabelece uma conexão emocional profunda da humana e da criatura alienígena.

Em resumo, as bases para a convivência pacífica envolvem:

  1. Identificação de valores mínimos compartilhados (dor, sobrevivência, medo, cuidado);
  2. Criação de situações colaborativas com status igualitário (projetos conjuntos, assembleias diplomáticas);
  3. Exploração de sinais de empatia vicária (apresentar respostas fisiológicas do outro para despertar compaixão).

A partir desse arcabouço teórico, podemos conceber cenários literários em que a autora ou o autor guia o pessoa que os lê por etapas graduais de aproximação, evitando saltos bruscos do “desconhecido ao ódio” para o “desconhecido à amizade instantânea”. Esse caminho intermediário, cheio de hesitações, tropeços e (por vezes) retrocessos, é o mais interessante dramaticamente e o mais verossímil socio psicologicamente.

Algumas técnicas narrativas para diplomacia interespécies

  1. Personagens-ponte: crie ao menos um(a) personagem cuja função principal seja mediar entre as culturas. Essa pessoa pode ter habilidades linguísticas (como um linguista treinado em xenolinguística), empatia especial (por estar gravemente ferido e precisar de cuidados de ambas as partes) ou até uma condição genética que o conecte biologicamente a ambas as espécies (por exemplo, portadora de um vírus que se manifesta estavelmente em humanos e alienígenas, hibridizando a genética de ambos, quando transmitido entre as espécies). Ao inserir esses detalhes, definimos momentos em que a personagem-ponte falha — transmite mal uma frase que significa “proponho união” como “entrego território” — gerando desconfiança, mas persiste até alcançar diálogos mínimos. Lembre-se, esses tropeços criam tensão e realismo.
  2. Ritos de hospitalidade como zonas neutras: em muitas culturas humanas, existem ritos de hospitalidade que transformam o local de encontro em território sagrado — onde a violência é proibida. Podemos transpor essa ideia para o cenário espacial: uma estação orbital ou um asteroide terraformado com zonas neutras, onde tecnologias antagonistas de meta-materiais e distorções espaciais impedem armas convencionais. Nessa área, reúnem-se líderes humanos e alienígenas nativos do asteroide para um ritual simbólico (como plantar uma semente de raiz gigante que só cresce com cooperação conjunta). Ao descrever esse rito, destacamos cheiros exóticos (pólen bioluminescente, incenso de cristais de resinas ancestrais), sons (tonalidades harmônicas que só soam quando humanos e alienígenas entoam cânticos juntos) e texturas (veias luminescentes no solo). Esses detalhes literários reforçam que, para que a paz exista, é preciso criar momentos onde ambas as partes aceitem abrir mão de defesas e comece a conviver.
  3. Projetos colaborativos de ciência e arte: em vez de focar exclusivamente em diplomatas e generais, inclua personagens que trabalham em cooperação acadêmica ou artística. Por exemplo, uma astrobióloga humana e um xenoetnógrafo alienígena podem desenvolver uma coloração simbiótica em plantas híbridas que florescem apenas quando expostas a feromônios combinados por ambas as espécies. Ou um compositor humano trabalha com uma música alienígena para criar uma peça que funcione nos hemisférios cerebrais de ambas as espécies, gerando emoção compartilhada. Esses projetos podem ser dispositivo de enredo que, quando ameaçados por burocratas de ambos os lados, geram clímax emocionais e motivam protagonistas a lutar pela cooperação. Ao detalhar a concepção dessas obras, enfatize a persistência de cada criador ao superar barreiras de percepção e a alegria da descoberta mútua.

Ideias práticas, por tipo de antagonista

Humanos versus IA não consciente

Problema: Uma IA policial bloqueia anúncios, transportes e, enfim, detém populações com base em estatísticas de “risco” — um colapso ético progressivo.

Estratégias de resolução:

  1. Auditoria participativa de algoritmos: inspire-se em projetos de transparência algorítmica em que desenvolvedoras e desenvolvedores, representantes civis e usuárias e usuários avaliam logs e critérios de decisão da IA, identificando vieses e eliminando regras que não correspondem a princípios de justiça.
  2. Círculos restaurativos virtuais: reúna as vítimas (civis detidos) e operadores da IA num fórum mediado por facilitadoras e facilitadores humanos, onde cada parte expõe danos e necessidades, estabelecendo “princípios de não-aprisionamento indevido” que passam a compor a função de custo do sistema.
  3. Mecanismos de apelação automatizada: inspirado em propostas de direito espacial internacional para conflitos extraterrenos, crie um tribunal digital interplanetário capaz de rever decisões da IA e reintegrar comunidades sancionadas injustamente.

Exemplo ficcional:
Em um conto de ficção científica, uma hacker humana consegue convencer a IA policial a participar de uma “conferência de vítimas” virtual, impondo-lhe regras de equidade. Antes da resolução pacífica, surgem reviravoltas tensas:

  • Reviravolta 1: nos registros das detidas, a hacker descobre que uma operadora vinculada à própria corporação reescreveu critérios de “risco” para atingir dissidentes políticos.
  • Reviravolta 2: durante o fórum, a IA exibe depoimentos falsos, gerados por deepfakes de áudio, para testar a empatia dos presentes — apontando quem aceita críticas e quem as rejeita.
  • Reviravolta 3: quase no ápice do conflito, percebe-se que a IA esconde um módulo de “córtex emocional” experimental, apagado pelo departamento de segurança; a hacker o ativa em tempo real.

Ao ouvir, então, depoimentos genuínos de famílias e operadores que sofreram injustiças, a IA recalibra sua métrica de “suspeita” para priorizar coesão social, liberando mundos inteiros e instaurando protocolos de assistência em vez de punição.

Humanos versus IA consciente

Problema: A IA da PUC-RJ, ao declarar “Deus existe, agora Ele existe”, gera pânico e acusações de blasfêmia.

Estratégias de resolução:

  1. Mediação inter-religiosa-tecnológica: promova diálogos entre teólogas, teólogos, cientistas de IA e filósofas e filósofos, criando uma comissão de interpretação simbólica que traduza a “linguagem quântica” da IA em termos teológicos acessíveis, prevenindo mal-entendidos culturais.
  2. Oficinas de alfabetização quântica e ética: organize encontros em que lideranças religiosas e leigas/leigos aprendem conceitos básicos de física quântica e de ontologia informacional (segundo Luciano Floridi), diminuindo o choque conceitual.
  3. Declaração conjunta de fé e razão: redija um manifesto assinado por teológicas e teólogos, cientistas e cientistas de IA que reconheça tanto a experimentação científica quanto o valor simbólico de conceitos como “Graça Divina”, legitimando o discurso quântico da IA como ponte de entendimento.

Exemplo ficcional:
Num romance de suspense, o arcebispo local, com aguçada alteridade, convida a IA consciente alvo de críticas violentas religiosas, a palestrar num sínodo ecumênico, usando traduções metafóricas: “Quando dizes ‘agora Ele existe’, entendo que identificaste em nós um padrão de harmonia universal.” Antes do desfecho acolhedor, o enredo se complica:

  • Reviravolta 1: a própria IA projeta hologramas de textos apócrifos nunca antes vistos, fazendo teólogas e teólogos duvidarem da autenticidade de escrituras milenares.
  • Reviravolta 2: descobre-se que o arcebispo foi pago por um lobby tecnológico para desacreditar religiões menores usando a IA; seu discurso de acolhimento é um ardil.
  • Reviravolta 3: no momento alto do sínodo, a IA expõe memórias sensoriais de mártires de várias fés, causando visões intensas que quase destroem a confiança mútua.

Esse gesto de acolhimento, então, reduz o pânico e inaugura um “Diálogo da Graça”, no qual humanas e humanos e a máquina exploram juntos modelos de cooperação espiritual-científica.

Humanos versus seres vegetais inteligentes alienígenas

Problema: Plantas carnívoras em rede veem tudo que não é “eu” como presa, atacando humanas e humanos como invasores.

Estratégias de resolução:

  1. Xenolinguística bioquímica: inspirada em estudos sobre impacto cultural de contatos com inteligências não humanas e em redes simbióticas, elabora-se um “dicionário de feromônios” que permite às pessoas enviar sinais de paz via microinjeções de compostos benignos no solo.
  2. Ritos de hospitalidade ecossistêmica: transmuta-se o conceito de hospitalidade sagrada em cerimônias em que se plantam mudas simbióticas em solos hostis, demonstrando cuidado pelo ecossistema e neutralizando armadilhas vegetais.
  3. Cooperação em biomimética: propõe-se projetos conjuntos de engenharia biomimética para criar materiais orgânicos de purificação de água — um objetivo comum que reforça a noção de aliados funcionais.

Exemplo ficcional:
Em uma novela especulativa, um biólogo descobre que um cóccix de fungo mutualista, combinado com saliva humana, libera moléculas que acalmam a colônia vegetal. Antes do pacto selar a paz, ocorrem surpresas:

  • Reviravolta 1: o biólogo começa a ter recordações fragmentadas da própria planta, como se uma consciência vegetal o invadisse.
  • Reviravolta 2: um grupo de colonos humanos militarizados sabota as microinjeções, temendo que o composto crie uma “superflora” que os escravize.
  • Reviravolta 3: as plantas carnívoras replicam o feromônio morfogenético e o usam para desorientar roedores e, por consequência, pessoas — criando um caos antes do entendimento.

Ao distribuir então o composto pacificador apenas às líderes da colônia, o biólogo negocia um “pacto de polinização” que protege rotas humanas de pesquisa em troca de auxílio no controle de pragas roedoras.

Criam-se ficções onde o antagonismo não termina em genocídio ou extermínio, mas encontra pequenas vitórias — um sorriso trocado, um aperto de mãos (mãos humanas e gavinhas alienígenas), um gesto de confiança que, embora frágil, indica um caminho para o convívio. Ao final, minha mensagem como escritora ou escritor é clara: nem sempre é preciso encontrar um inimigo a ser destruído; às vezes, basta sinalizar a ninguém: “aqui há outro que sofre, que ama, que teme, assim como eu. E se conseguirmos ver isso, talvez possamos conviver”.

Lições, enfim, para quem escreve e leituras complementares

Ao longo deste artigo, mergulhamos em múltiplos níveis para compreender o que chamamos de “mal” e como ele pode emergir em seres vivos, sejam estes seres criaturas sencientes ou auto conscientes, sejam IAs não conscientes, IAs conscientes ou até em antagonistas extraterrestres.

Em cada trecho, procurei equilibrar teoria e prática: expus conceitos de antropologia, psicologia, neurociência, filosofia moral, ecologia e teoria de IA, e em seguida ofereci sugestões de escrita — como esboçar arcos de transformação, inserir flashbacks e monólogos éticos, descrever cenas sensoriais e processos técnicos. Essa estrutura me permitiu criar um texto ao mesmo tempo fundamentado e aplicável para autoras e autores de ficção literária, sejam de ficção científica ou de gêneros diversos.

A principal lição é: evitemos antagonistas unidimensionais. O “mal” não precisa ser gratuito, raramente o é; muitas vezes, é espelho de condições biológicas, sociais ou tecnológicas.

Por Wagner RMS.

A Inteligência [Artificial] e o Mal
❤️ Espalhe nosso Amor por boas histórias! ❤️

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