Sob a Pele (Under The Skin)

Protagonista do filme Sob a Pele com estrelas sobre seu rosto e com o letreiro com o nome do filme.

Sob a pele do cotidiano, o que é o mundo? O que você é, sob a sua superfície? O que somos, de verdade, não apenas na aparência?

E se você precisa entender o outro e o seu impulso fundamental (para prosseguir vivendo, compreendendo, operando o mundo, e sobrevivendo aos desafios dele) é desvendar mistérios e superar desafios? O que você faria para entender algo realmente estranho? Não um estranho comum, mas um estranho jamais visto em todo o seu mundo. Você teria que enxergar sob a superfície, sob a pele daquilo que investiga. Disso que trata Under The Skin.

Talvez não exista mesmo filme ruim ou bom. Talvez o que existam são histórias (dentro da História única que a humanidade conta desde seu início ancestral) que não tem a ver contigo naquele instante, no instantâneo do tempo que ocorreu quando você viu ou leu aquela história. Mas filme de arte, conceitual, é mesmo brabo de engolir às vezes, pelo menos se você não tem a necessária paciência para dar uma boa olhada embaixo do capô, no subtexto, as coisas se complicam.

Amiga, amigo, estou aqui

Mas eu estou aqui para te ajudar a ler este subtexto, e ir aprendendo com isso, a ler outros que vierem.

Antes, no entanto, preciso te avisar que daqui para frente praticamente tudo são spoilers, não esqueça que avisei se preferir ver o filme primeiro.

“Sob a Pele”, do diretor britânico Jonathan Glazer é uma película que se afigurou para mim um filme com certeza de arte. Daquele tipo que não te oferece quase nenhum apoio seguro onde se firmar, quase nenhum clichê confortável para balizar sua jornada, especialmente no começo, onde este filme te mostra algo se configurando, lentamente, em um olho humano, e não facilita em nada para o espectador entender que aquilo que você vê não é meramente algo, mas sim um alguém (o itálico aqui aplicado no sentido de que há, neste alguém, algum tipo de consciência, mas que esta consciência absolutamente nada tem a ver com a nossa forma de pensar o mundo).

E este alguém se metamorfoseia gradualmente daquilo que é normal para ele/ela/elu (e que é absurdamente estranho para nós, afinal de contas o que diabos é um disco preto flutuando no vazio, perto de uma luz radiante que vai se posicionando enquanto um tubo preto brota de seu centro, meio que ao mesmo tempo em que se encaixa nele?!?), virando nada mais, nada menos, que um exemplar daquela coisa incongruente que ele/ela/elu está estudando: nós, humanos.

Ou seja, acredito que no início do filme nós assistimos aquele estranho alguém vestindo uma fantasia de humano, e aprendendo a usá-la.

E como em tudo que vem de alguém, mesmo não humano, há método em suas ações.

Sim, há método na loucura

Podemos discutir intenções, modos de pô-las em prática, estrutura biológica e o reflexo dela na cultura etc., mas algo inteligente, por mais alienígena que seja, age com um certo método, mesmo que, a princípio, pouco compreensível para nós. Até o oceano de Solaris parece ter uma intenção, que seja a de entender que raio de coisa é essa gelatina bípede que vem dentro de metal? (humanos em suas naves e estações espaciais).

E o método do alguém alienígena de “Sob a Pele” é basicamente capturar espécimes, dissecar e analisar seu funcionamento, até esse alguém conseguir compreender de fato o que é aquilo chamado humano. Então, equipes de campo são despachadas por administradores. Equipes estas devidamente disfarçadas na coisa humana, divididas em chamarizes e apoio, onde o chamariz ou isca faz o papel da minhoca na ponta do anzol e o apoio fornece a vara de pesca e o molinete, e limpa a sujeira despois que o peixe é esviscerado.

A isca, voluptuosa, bela para os olhos e sentidos do alvo humano, sinuosa e quase irresistível, é Scarlett Johansson, ostentando, com pouco pudor e bastante graça, aquele rosto/corpo de mulher real, bonita sem modismos super atléticos, que não desfila em passarelas, altas borboletas esguias, mas que encanta quem aprecia mulheres. Ponto para a atriz, que mostra sua versatilidade dramática, em uma personagem que não é super agente secreta malhada, mas que precisa se expressar como uma mulher que não é humana descobrindo o que é ser humana. Johansson entrega uma performance ousada e introspectiva, dando vida a uma personagem que é ao mesmo tempo enigmática e comovente.

Espécime

Já a equipe de apoio está sob a pele de uns sujeitos em trajes modernos, mas com ares meio rústicos, motoqueiros mal encarados, aos quais não damos mais que um olhar desconfiado e receoso se passam por nós na rua, em nosso impulso de julgar. Depois que a chamariz toma a forma de Johansson, esses motoqueiros capturam uma espécime feminina qualquer e dão à chamariz sua identidade, simbolicamente transferida por suas roupas (algo nos diz que a espécime humana será processada e descartada logo em seguida).

O circo está armado e aqueles que vieram estudar os humanos soltam a chamariz no mundo. Razoável supor que existem outras iscas, talvez masculinas e femininas, por aí, coletando toda a diversidade humana. Tenha cuidado redobrado com quem te assedia de repente na rua, o interesse em você pode ser, digamos, mais visceral.

A caçada começa

E a chamariz deve levar qualquer espécime homo sapiens masculino incauto (e que seja do tipo extremamente corriqueiro, convenhamos, o que pensa com seu sexo) para determinados lugares que nada mais são que armadilhas, onde o pobre hominídeo, achando que vai ganhar uma noitada com uma atraente e um tanto inverossímil garota dadivosa e providencialmente parecida com a Viúva Negra dos Vingadores, acaba preso no visgo de uma gaiola que o engole, digere, analisa e, no fim, o armazena sob a forma de uma pasta contendo todo o seu material básico, como fazemos com muitos seres vivos que deram azar de não nascerem humanos e que são alvo de nossos estudos científicos.

Como essa coisa humana que nós somos, desse tal planeta Terra, é complexa e fugidia, e a intenção daqueles que nos estudam é capturar espécimes que não façam muita falta, pois não se deseja (ao menos não ainda) desestruturar o meio ambiente em que a coisa analisada vive, é preciso que a chamariz seja discreta e, em sua casca humana, absolutamente convincente.

Mas, tá aí, me explique uma coisa: como você poderia, digamos, se disfarçar seriamente de golfinho sem se molhar?

Borboletas e alfinetes

Então, Scarlett está lá, solta no nosso mundo, focada e séria, fazendo seu trabalho, levando homens para a perdição, e ela faz isso inocentemente, afinal o alguém do qual ela faz parte ainda não entende patavinas do que faz feliz ou dói em um ser humano, e está, entre outras coisas, justamente tentando entender isso: o que nos move, pegando alguns de nós e nos armazenando como borboletas mortas catalogadas e espetadas em cartolina.

Mas, enquanto a superficialmente bela alienígena parece cumprir sua função, a chamariz, se vendo obrigada a convier conosco, tem sua natural curiosidade despertada pelo mundo humano e, visto ela ser projetada para isso, a chamariz-sonda-observadora Scarlett imita, vivencia, e vai aos poucos querendo vivenciar mais e mais perfeitamente as coisas humanas, e se molhar nelas, até que encontra alguém que, feito ela, se esconde sob uma pele que não é a sua, pois enquanto a chamariz poderia ser vista como um monstro agindo sob a pele de uma mulher, a última de suas vítimas é um homem vivendo sob aquilo que aparentemente é a pele de um monstro.

O Monstro que me habita

Assim, ao capturar o rapaz obrigado e viver com suas deformidades físicas e levá-lo a uma das suas armadilhas, a chamariz acaba por conseguir, pelo menos por um momento fugaz de empatia com o rapaz, enxergar a si mesma sob a ótica humana, tendo um vislumbre de que está ajudando a triturar alguém, não algo. Daí ela decide fugir, mas antes Scarlett até mesmo tenta deixar o homem disfarçado de monstro fugir também, só que os motoqueiros da equipe de apoio, infelizmente, estavam por perto… ou será que a chamariz apenas usou o espécime como distração para sua fuga? Aliens, pff!, impossível confiar cem por cento neles.

Mas, veja, você saberia fugir de uma situação social inconveniente para golfinhos se, de repente, fosse transformado naquele golfinho que mencionei antes? Você não faria a menor ideia de como desligar os sonares e para onde ir no fundo do mar para não ser encontrado pelos seus pares golfinhos, não é? Você simplesmente apontaria seu nariz numa direção e nadaria para o mais longe que conseguisse.

Foi o que Scarlett fez. Ela simplesmente foi embora, deu no pé dirigindo, andando, saindo de cena, em alguma direção oposta ao que estava fazendo (de errado? Sim, não, talvez, ela ainda estava aprendendo o nosso jeito humano de enxergar a ética), tomando o máximo de cuidado que lhe foi possível para desaparecer. Essa atitude deixou os motoqueiros da equipe de apoio em alerta, e eles, quase imediatamente, começaram diligentemente a esquadrinhar o mundo humano atrás da colega fugitiva deles.

Em tempos tão cínicos

É possível que se enxergue esse ponto do filme como o mais frágil, quando a chamariz alienígena que é Johansson tenta, em sua fuga, se misturar e integrar com a humanidade da qual era algoz. Ela quer ser uma de nós, sendo acolhida por um homem gentil e se dispondo a fazer parte da vida deste sujeito, mas descobre, em uma cena de curiosidade tragicômica, que nem que ela quisesse poderia cumprir até o fim a tarefa para a qual foi inicialmente modelada, pois sua pele humana não tem a entrada sexual que mulheres costumam ter, o que faz sentido, de acordo com o método de captura que vemos no filme, que o disfarce dela não fosse completo com órgãos sexuais, pois os homens capturados nunca tocariam nela.

Ela pode gostar de alguém, mas não é capaz de consumar paixões, e, frustrada, incapaz de encontrar lugar nem entre os humanos e nem entre seus pares, a chamariz abandona o homem gentil e foge novamente, encontrando em uma floresta isolada um lenhador que a ataca brutalmente e acaba rasgando sua pele humana, revelando o que a preenche, uma substância negra e delicada que procura manter a forma vagamente humanoide, a essência alienígena da chamariz. Horrorizado, o lenhador atacante se entrega a bestialidade do medo que consome sua alma ignorante, e imola pelo fogo a extraordinária forma de vida alienígena.

Não concordo com essa parte do filme ser frágil. Apesar de não ter apreciado o fim trágico da protagonista em sua jornada em busca de significado, entendo que isso mostrou a dor e a tragédia que vivemos todos e todas nós em nossa eterna busca por conexão e sentido que muitas vezes, quando aliada as nossas misérias e ignorâncias, nos faz encontrar mitos que nos cegam, propósitos pueris, dogmas sem sentido. Somos gerados em profunda conexão com nossas mães, nós e elas formando um organismo quase simbionte, então nascemos sós e morremos sós. A chamariz se descobriu capaz de sentimentos, empatia e compaixão solitariamente, renasceu humanizada e morreu totalmente isolada de nós e da sua própria espécie.

Uma importante função

Compreendo que assim termina a história dela, como uma advertência que sublinha uma frase que ouvi um dia desses e achei excelente e atual: “para todo problema complexo há uma solução simples e errada”. As mazelas da existência humana e dos horrores que impomos uns aos outros (ódio, incompreensão, isolamento, indiferença, violência, e tudo mais que há de pior em nós) são sintomas de problemas culturais e sociais complexos e que não serão solucionados com armas, punhos e salvadores da pátria. Exigem análise, amadurecimento, raciocínio, empenho intelectual e emocional em sociedade, exigem soluções igualmente complexas.

Consegue imaginar o que poderia acontecer com a chamariz, com a humanidade e com o povo da chamariz se o lenhador cuja brutal ignorância a matou tivesse florescido em uma sociedade mais complexa que abraçasse alvos menos fisiológicos como acúmulo de capital e valorizasse o árduo e custoso caminho de formar pessoas melhores? Podia dar errado, sim, mas podia dar muito certo.

Só a possibilidade de criar laços construtivos com novos seres e descobrir os desafiantes mistérios do Universo juntos já valeria os riscos. Em um mundo mais acolhedor e menos irracional, teríamos finais um pouco menos dramáticos, talvez, mas também teríamos horizontes muito, muito, muito maiores e possibilidades muito mais fascinantes.

Uma das importantes funções de nós, autores e autoras, é ajudar a construir uma sociedade humana assim, melhor.

Por Wagner RMS.

Sob a Pele (Under The Skin)
❤️ Espalhe nosso Amor por boas histórias! ❤️

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