Estruturas narrativas, a Kishōtenketsu

Ilustração do artigo Kishōtenketsu Uma Jornada para uma Estrutura Narrativa Única que é pintura estilizada com formas se sobrepondo e silhueta meditando.

Kishōtenketsu começa com ki

A estrutura narrativa Kishōtenketsu é uma forma de contar histórias que se origina das tradições literárias do Leste Asiático. Ao contrário das estruturas ocidentais, onde o conflito é o motor principal, o Kishōtenketsu permite abordagens mais introspectivas e focadas na evolução interior e nas relações interpessoais dos personagens. A ênfase recai especialmente nos eventos do terceiro ato, caracterizados por um elemento de surpresa.

A pronúncia fonética da palavra Kishōtenketsu é aproximadamente “kee-shoh-ten-keh-tsoo”, com ênfase recaindo na segunda sílaba, “shoh”. Essa estrutura se desdobra em quatro partes distintas: introdução (Ki), desenvolvimento (Shō), virada (Ten) e conclusão (Ketsu), esta estrutura permitindo uma exploração mais profunda dos personagens e temas, sem a necessidade de um conflito externo.

A arte de contar histórias sem conflito

Vamos detalhar as partículas que compõem a palavra “Kishōtenketsu” e que designam os quatro atos que uma obra que siga essa narrativa deve ter:

Ki: A Introdução

O “Ki” serve para estabelecer o cenário e introduzir os personagens. Não é necessário um incidente incitante; em vez disso, o foco está na atmosfera e no mundo da história. Comece apresentando seus personagens e o cenário. Estabeleça o tom e introduza os elementos essenciais da história. Pergunte-se: quem são os protagonistas? Onde e quando a história se passa? Como vivem os habitantes desse lugar?

Shō: O Desenvolvimento

O “Shō” aprofunda o que foi estabelecido no Ki, expandindo o mundo e explorando mais profundamente os personagens e suas relações. Explore os personagens com mais profundidade. Descreva suas motivações, relacionamentos e conflitos internos. Crie uma atmosfera rica e detalhada. Lembre-se de que o Shō não precisa ter um conflito central; concentre-se na jornada pessoal dos personagens.

Ten: A Virada

O “Ten” é o ponto de virada da história, onde ocorre algo inesperado que muda a direção da narrativa. Este elemento pode ser sutil ou significativo, mas é sempre surpreendente. Aqui está o ponto crucial. Surpreenda o leitor com algo inesperado. Pode ser uma revelação sobre um personagem, uma mudança no cenário ou uma virada na trama. Use sua criatividade para criar uma reviravolta intrigante.

Ketsu: A Conclusão

O “Ketsu” amarra todos os elementos da história, resolvendo a virada de uma maneira que harmoniza com o início, sem necessariamente resolver um conflito. Encerre a história de forma satisfatória. Volte aos elementos introduzidos no primeiro ato e mostre como eles se relacionam com a reviravolta. Não precisa ser um final grandioso; pode ser algo sutil e reflexivo.

Aplicabilidade do Kishōtenketsu

Vamos aplicar o Kishōtenketsu a uma história bem simples, de modo que possamos ver a técnica aplicada na prática:

Ki: João, um pescador, começa seu dia na tranquila vila costeira.
Shō: Ele encontra uma garrafa com uma mensagem misteriosa no mar.
Ten: A mensagem é um poema que fala sobre a beleza da vida marinha.
Ketsu: João, inspirado pelo poema, começa a pintar o mar, encontrando uma nova paixão.

Este exemplo mostra como o Kishōtenketsu pode criar uma narrativa envolvente sem um conflito tradicional.

Você conhece alguma obra que usa Kishōtenketsu

Filmes Kishōtenketsu (spoilers)

Vamos analisar três filmes que aplicam essa estrutura:

  1. Parasita” (2019):
    • Ki (Introdução): A família Kim, de origem pobre, se infiltra na casa da rica família Park, fingindo ser empregados. Aqui, conhecemos os personagens e suas circunstâncias.
    • Shō (Desenvolvimento): A relação entre as duas famílias se desenvolve, com os Kims aproveitando a situação. Não há um conflito central, mas sim uma exploração das diferenças sociais.
    • Ten (Reviravolta): A reviravolta ocorre quando descobrimos que a antiga empregada, Moon-gwang, está escondida no porão. Isso muda completamente o rumo da história.
    • Ketsu (Conclusão): O filme encerra com um confronto violento entre as famílias, resultando em mortes e uma mudança de poder.
  2. A Viagem de Chihiro” (2001):
    • Ki (Introdução): Chihiro e seus pais entram em um mundo espiritual após atravessarem um túnel. Ela precisa encontrar uma maneira de resgatá-los.
    • Shō (Desenvolvimento): Chihiro enfrenta desafios, trabalhando em um banho público para espíritos. Ela conhece Haku e Yubaba, explorando esse novo mundo.
    • Ten (Reviravolta): A reviravolta ocorre quando Chihiro descobre que seus pais foram transformados em porcos. Isso a motiva a lutar para salvá-los.
    • Ketsu (Conclusão): O filme fecha com Chihiro recuperando a identidade de seus pais e saindo do mundo espiritual.

Livros Kishōtenketsu (spoilers)

Exemplos de livros que utilizam a estrutura narrativa Kishōtenketsu:

  1. Convenience Store Woman por Sayaka Murata:
    • Ki (Introdução): A protagonista, Keiko, trabalha há anos em uma loja de conveniência. Ela se sente deslocada na sociedade e busca aceitação.
    • Shō (Desenvolvimento): Aprofundamos na rotina de Keiko, explorando sua relação com os colegas e as expectativas sociais. Não há um conflito central, mas sim uma exploração da vida cotidiana.
    • Ten (Reviravolta): A reviravolta ocorre quando Keiko decide fingir um relacionamento para se encaixar. Isso surpreende o leitor, pois esperávamos uma resolução diferente.
    • Ketsu (Conclusão): O livro fecha com Keiko aceitando sua singularidade e encontrando paz na sua própria maneira de viver.
  2. Station Eleven por Emily St. John Mandel:
    • Ki (Introdução): O mundo é devastado por uma pandemia, e acompanhamos vários personagens antes e depois do evento.
    • Shō (Desenvolvimento): Exploramos as histórias interconectadas dos personagens, suas relações e como a arte (especificamente uma peça de teatro) os une.
    • Ten (Reviravolta): A reviravolta ocorre quando descobrimos que a peça de teatro está ligada a todos os personagens, revelando conexões inesperadas.
    • Ketsu (Conclusão): O livro encerra com uma sensação de esperança e renovação, apesar das circunstâncias sombrias.
  3. The Hole por Hye-Young Pyun:
    • Ki (Introdução): Oghi, o protagonista, acorda de um coma após um acidente de carro que matou sua esposa e o deixou paralisado e desfigurado. Ele é cuidado pela mãe de sua falecida esposa, que está de luto.
    • Sho (Desenvolvimento): A história explora a relação entre Oghi e sua cuidadora. Oghi se sente negligenciado e sozinho em sua cama, enquanto a mãe de sua esposa lida com a perda da filha.
    • Ten (Surpresa): O elemento surpresa ocorre quando Oghi descobre que sua cuidadora está escondendo algo sinistro. Ele começa a suspeitar de suas intenções.
    • Ketsu (Conclusão/Reconciliação): A história culmina em um confronto tenso entre Oghi e sua cuidadora. Oghi enfrenta a verdade sobre o que aconteceu no acidente e sua relação com a mãe de sua esposa.

O Kishōtenketsu e as estruturas clássicas

Compare o que estudamos acima com as seguintes estruturas narrativas:

  1. Estrutura clássica de 3 Atos:
    • Atos:
      • 1. Apresentação: Introduz personagens e cenário.
      • 2. Conflito: Introduz o problema central.
      • 3. Resolução: Resolve o conflito.
    • Exemplo: “Star Wars: Episódio IV – Uma Nova Esperança” segue essa estrutura, com a apresentação de Luke Skywalker, o conflito contra o Império e a vitória final.
  2. Jornada do herói:
    • Estágios:
      • 1. Chamado à Aventura: O herói recebe um chamado para a jornada.
      • 2. Provações e Aliados: Enfrenta desafios e conhece aliados.
      • 3. Confronto Final: Luta contra o antagonista.
    • Exemplo: “O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel” segue a jornada de Frodo Baggins para destruir o Anel.

Como você percebeu, o Kishōtenketsu oferece uma abordagem refrescante para a escrita criativa, desafiando a noção de que todas as histórias devem necessariamente girar em torno de conflitos. Ao explorar esta estrutura, os escritores podem descobrir novas maneiras de contar suas histórias, focando mais no desenvolvimento dos personagens e na jornada emocional do que em confrontos dramáticos.

Story de Robert McKee versus Kishōtenketsu

Vamos comparar o Kishōtenketsu com a estrutura proposta por Robert McKee em seu livro “Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro”, que considero uma referência importante para quem quer contar boas histórias.

O Kishōtenketsu, composto por Ki (introdução), Sho (desenvolvimento), Ten (virada ou complicação) e Ketsu (conclusão) é essa estrutura notável por sua abordagem não conflituosa para construção da narrativa, onde a ênfase é colocada na harmonia e na revelação sutil, em vez de no conflito direto e na resolução.

Por outro lado, a estrutura narrativa de McKee, basicamente ocidental, é frequentemente associada ao modelo clássico de três atos, embora ele também discuta variações que incluem dois, sete e oito atos. McKee enfatiza a importância do conflito como o motor da narrativa, que se inicia no (já citado) que ele chama de Incidente Incitante, o momento em que algo “arranca” o protagonista de seu “mundinho” e o jogo na sua jornada de superação e busca de alcançar seus desejos.

Mas são estruturas irreconciliáveis?

A comparação entre essas duas estruturas revela diferenças fundamentais na concepção de uma história. O Kishōtenketsu permite uma exploração mais introspectiva e uma progressão narrativa que não depende do conflito tradicional. Isso pode resultar em uma experiência mais contemplativa para o público, onde a surpresa e a revelação vêm de mudanças internas e desenvolvimentos dentro do mundo da história.

Em contraste, a estrutura de McKee é construída sobre a premissa de que o conflito é essencial para capturar e manter o interesse do público. Ele argumenta que uma boa história é aquela onde os personagens são desafiados e transformados por meio da busca pela satisfação de seus anseios e através de suas lutas, levando a um clímax satisfatório e uma resolução conclusiva.

Ambas têm seu valor na arte da escrita, embora o Kishōtenketsu, que pode compor uma estrutura no estilo McKee, nos convida a explorar a complexidade humana de maneira sutil e intrigante.

Agora me fale você, acha possível que uma obra possa unir estas duas estruturas em uma grande história?

Por Wagner RMS.

Referências:

  1. Kishōtenketsu: uma jornada para uma estrutura narrativa única – https://escritaselvagem.com.br/como-escrever/kishotenketsu/
  2. Revisando! Kishotenketsu. – https://www.mylightnovel.com.br/2023/04/revisando-kishotenketsu.html
  3. Kishotenketsu: você conhece essa técnica de storytelling? – SOAP – https://blog.soap.com.br/kishotenketsu/
  4. Kishōtenketsu Story Structure: Writing Without Conflict. https://www.campfirewriting.com/learn/kishotenketsu
  5. The Possibility of Plot Without Conflict – Dustin Beltramo – https://www.dustinbeltramo.me/2022/03/17/kishotenketsu-plot-without-conflict/
Estruturas narrativas, a Kishōtenketsu
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