Eu sei que você já ouviu isso mil vezes antes, mas é verdade: o trabalho duro compensa. Se você quer ser bom, você tem que praticar, praticar, praticar. Se você não ama algo, então não o faça.
_ Ray Bradbury
Sempre admirei Ray Bradbury como um dos maiores nomes da literatura de ficção científica mundial, impactante na literatura em geral, e aquele cujo texto é o mais poético, Ray é conhecido por seu estilo de escrita altamente descritivo e lírico. O jornal New York Times chamou Bradbury de “o escritor mais responsável por trazer a ficção científica moderna para o mainstream literário”. Sem dúvida, Ray foi um artista admirável, se ainda não o leu, não perca tempo. Falecido, infelizmente, em 5 de junho de 2012, em Los Angeles, aos 91 anos, teve uma vida prolífica, o escritor criou obras-primas como Fahrenheit 451, O Homem Ilustrado e As Crônicas Marcianas.
Mergulhado, desde muito cedo, em um tipo bem norte-americano de realismo mágico, Ray frequentemente contava uma história sobre um encontro com um mágico de Carnival (um tipo de parque de diversões itinerante dos EUA), um tal Sr. Electrico, em 1932. O escritor costumava descrever como isto foi uma influência notável em sua vida: coberto de eletricidade estática, o Sr. Electrico tocou o jovem Bradbury no nariz e disse: “Viva para sempre!”. No dia seguinte, Bradbury voltou ao Carnival para pedir conselhos ao Sr. Electrico sobre um truque de mágica, e o mago disse ao jovem Bradbury que ele era uma reencarnação de seu melhor amigo, morto na Primeira Guerra Mundial. Bradbury, encantado com a afirmação surreal, escreveu mais tarde: “alguns dias depois comecei a escrever em tempo integral. Escrevi todos os dias da minha vida desde aquele dia”
O que pretendo explorar aqui neste artigo é qual o “truque” que faz o estilo de Bradbury tão único e envolvente. Como ele consegue criar mundos fantásticos e personagens memoráveis com sua prosa poética e imaginativa?
Vou compartilhar contigo alguns aspectos essenciais da técnica de escrita de Ray Bradbury que eu aprendi e busco aplicar na minha própria escrita, para exemplo, eis uma modesta primeira tentativa minha. Serão, enfim, algumas dicas de como desenvolver a escrita de ficção científica com a poética de Bradbury.
A escrita como prazer
Uma das características mais marcantes de Bradbury é seu entusiasmo pela escrita. Ele escrevia por amor, por diversão, por necessidade. Ray não se preocupava com o mercado editorial, com as críticas ou com as modas literárias, escrevia o que queria, o que sentia, o que sonhava e com paixão, com zelo, com alegria.
Em seu livro Zen na Arte da Escrita, Bradbury afirma que “se você está escrevendo sem entusiasmo, sem gosto, sem amor, sem diversão, você é apenas meio escritor. Significa que você está tão ocupado em manter um olho no mercado comercial, ou um ouvido atento à panelinha vanguardista, que você não está sendo você mesmo. Você nem se conhece. Pois a primeira coisa que um escritor deve ser é… excitado. Ele deve ser uma coisa de febres e entusiasmos.”
Ouça o Mestre, absorva essa atitude de Bradbury e procure escrever pelo prazer da escrita. Escrever sobre o que te interessa, o que te fascina, o que te desafia. Escrever com sinceridade, com emoção, com criatividade, até mesmo com certa sofreguidão.
A escolha das palavras, uma a uma
Outra característica da técnica de escrita de Ray Bradbury é a sua cuidadosa escolha das palavras. Ele é um mestre em usar as palavras certas para transmitir os significados pretendidos aos seus leitores e ouvintes. Ele usa uma linguagem objetiva e ao mesmo tempo pessoal, e algumas de suas palavras demonstram sua habilidade em usar uma multiplicidade de sentidos (tato, paladar, olfato, etc.) e de usar figuras de linguagem.
Um exemplo disso é o trecho do seu romance Fahrenheit 451, que mostra como Bradbury usa diferentes palavras em uma dicção formal para transmitir os significados pretendidos aos seus leitores, pintando um retrato fiel dos seus personagens, sem receio de usar metáforas:
Sabia que quando regressasse ao quartel dos bombeiros faria vista grossa a si mesmo no espelho, um menestrel de cara pintada com rolha queimada. Depois, ao ir para a cama, sentiria no escuro o sorriso inflamado ainda preso aos músculos da face. Nunca desaparecia, aquele sorriso, nunca, até onde conseguia se lembrar.
O profissional das chamas que deveria, em princípio, apagá-las, neste que foi um dos futuros distópicos primordiais na literatura, dá lugar ao bombeiro que incendeia o conhecimento, ateando fogo aos livros, ao invés de salvá-los. Este homem às avessas sente-se, no início, feliz e sardônico (“o sorriso inflamado ainda preso aos músculos da face”), feito criança fazendo arte às gargalhadas e pondo em chamas montes de folhas secas.
De onde depreendemos também:
- Imagética: (Pode ser considerada uma forma de linguagem figurada, pois muitas vezes usa metáforas, símiles e outras figuras de linguagem para criar imagens vívidas na mente do leitor ou espectador) Bradbury usa imagens poderosas para transmitir o estado emocional do personagem. A descrição de se ver no espelho como um “menestrel de cara pintada com rolha queimada” é uma metáfora visual forte que transmite uma sensação de alienação e despersonalização;
- Uso de metáforas: (A comparação direta entre duas coisas que normalmente não são associadas) A metáfora do “sorriso inflamado” preso aos músculos da face sugere uma felicidade forçada ou artificial, possivelmente escondendo sentimentos mais profundos de desconforto ou insatisfação;
- Atenção aos detalhes sensoriais: Bradbury descreve a sensação do sorriso preso aos músculos da face, uma descrição tátil que ajuda a criar uma experiência imersiva para quem lê;
- Repetição: A repetição da frase “nunca desaparecia, aquele sorriso, nunca” enfatiza a persistência desse estado emocional, sugerindo que é uma condição crônica ou duradoura para o personagem;
- Tom: O tom deste trecho é sombrio e introspectivo, refletindo o conflito interno e a alienação do personagem.
Especificamente acerca das palavras, ele as escolhe não apenas porque transmitem a ação e o enredo de suas histórias, mas também por criarem uma atmosfera rica e evocativa:
- Palavras Descritivas: Bradbury frequentemente escolhe palavras que são altamente descritivas. Ele usa adjetivos e advérbios de maneira eficaz, sem excessos, com o claro objetivo de criar imagens vívidas na mente do leitor;
- Palavras Emocionais: ele também escolhe palavras que transmitem emoção. Usa palavras que refletem os sentimentos internos dos personagens e a atmosfera emocional da cena;
- Palavras Simbólicas: e muitas vezes escolhe palavras que têm um significado simbólico. Ele usa essas palavras para adicionar uma camada de significado à sua escrita;
- Palavras Sensoriais: Ray é conhecido por sua habilidade em evocar os cinco sentidos através de sua escolha de palavras. Ele escolhe palavras que ajudam o leitor a ver, ouvir, cheirar, provar e tocar o mundo de suas histórias.
Estrutura das frases de Ray
Assim como na escolha das palavras, Bradbury também é muito seletivo nas frases. Quando se trata de usar frases complexas e, paradoxalmente, simples, ele é incomparável. Veja mais este trecho de Fahrenheit 451:
Havia agora somente a garota caminhando com ele, o rosto claro como neve ao luar, e Montag sabia que ela estava pensando nas perguntas que ele fizera, procurando as melhores respostas.
— Bem — disse ela —, tenho dezessete anos e sou doida. Meu tio diz que essas duas coisas andam sempre juntas. Ele disse: quando as pessoas perguntarem sua idade, sempre diga que tem dezessete anos e que é maluca. Não é uma ótima hora da noite para caminhar? Gosto de sentir o cheiro das coisas e olhar para elas e, às vezes, fico andando a noite toda e vejo o Sol nascer.
Então, vejamos:
- Linguagem descritiva: concatenando as palavras descritivas, Bradbury usa uma linguagem descritiva para criar a imagem na mente de quem lê daquilo que o texto representa fisicamente e emocionalmente. Por exemplo, a frase “o rosto claro como neve ao luar” evoca uma imagem clara e poética da garota, do efeito que ela causa em Montag;
- Uso de metáforas: (Repito, para frisar: “metáfora” é a comparação direta entre duas coisas que normalmente não são associadas) c autor usa metáforas para descrever a garota. Ele a descreve como “doida”, o que sugere que ela é única e não convencional;
- Diálogo realista: o diálogo entre Montag e a garota é realista, no sentido que se assemelha ao modo que as pessoas realmente falam no mundo real, nem sempre objetivamente, e este diálogo é, também, revelador. Através do diálogo, aprendemos sobre a personalidade da garota e sua visão de mundo;
- Atenção aos detalhes sensoriais: Ray Bradbury presta muita atenção aos detalhes sensoriais em sua escrita. Ele menciona o cheiro das coisas e a visão do Sol nascente, o que ajuda a criar uma experiência imersiva para de quem lê, cuja própria mente busca: qual a sensação de sentir os cheiros à noite? Esse reação faz com que essa leitora ou leitor entrem na mística do personagem e da cena, sem dúvida;
- Temas: este trecho também toca em temas comuns na obra de Bradbury, como a individualidade (a garota é descrita como “doida”) e a apreciação da natureza (ela gosta de sentir o cheiro das coisas e ver o Sol nascer).
Para desenvolver a escrita de ficção científica com a poética de Bradbury, observe os elementos acima, construa seus textos com eles, variando a estrutura das frases e a sintaxe. Outra, faça uso da alternância entre frases curtas e longas, pois isso ajuda a criar um ritmo na escrita que reflete as emoções e experiências internas dos personagens. As frases curtas oferecem momentos de pausa e reflexão, enquanto as frases mais longas permitem uma exploração mais profunda das emoções e pensamentos dos personagens.
A essencial linguagem figurada
A quarta característica da técnica de escrita de Ray Bradbury é o seu uso abundante de símbolos e personificações. Apesar do seu compromisso em usar uma linguagem objetiva, ele frequentemente emprega metáforas, como já vimos, símiles e personificações para criar imagens vívidas e transmitir emoções profundas. A propósito, sempre me encantei com essa capacidade de Bradbury.
Voltado ao Bombeiro Montag e a garota:
Montag meneou a cabeça. Olhou para uma parede vazia. O rosto da garota estava ali. Em sua memória, era um rosto lindo; na verdade, assombroso. Era um rosto muito tênue, como o mostrador de um reloginho fracamente discernível num quarto escuro no meio da noite, quando se acorda para olhar as horas e se vê o relógio dizendo a hora, o minuto e o segundo, com um silêncio branco e um brilho, todo certeza, e sabendo o que tinha a dizer sobre a noite que passa depressa rumo a novas escuridões, mas também rumo a um novo sol.
Podemos analisar as figuras de linguagem empregadas no trecho acima deste modo:
- Metáfora: Bradbury usa a metáfora do “mostrador de um reloginho fracamente discernível num quarto escuro” para descrever o rosto da garota. Esta metáfora sugere não apenas a delicadeza e a efemeridade do rosto da garota, mas também a ideia de que ela é uma constante na mente de Montag, assim como o tempo é uma constante na vida;
- Imagética: (Lembre-se, pode ser considerada uma forma de linguagem figurada) a imagem do “silêncio branco e um brilho, todo certeza” evoca uma sensação de calma e certeza, sugerindo que a presença da garota traz algum grau de conforto ou estabilidade para Montag;
- Simbolismo: (Usa símbolos para representar ideias mais complexas. Por exemplo, um autor pode usar a imagem de uma tempestade para simbolizar conflito ou tumulto interno) o “novo sol” no final do trecho pode ser visto como um símbolo de esperança ou renovação, sugerindo que apesar da escuridão (tanto literal quanto figurativa), sempre há a promessa de um novo dia e é assim que o personagem se sente, quanto a presença reconfortante da imagem da garota em sua vida, podem haver dores (novas escuridões), mas também vão haver alegrias (novo sol);
- Personificação: (Características humanas são atribuídas a objetos inanimados ou conceitos abstratos) O relógio é personificado como “sabendo o que tinha a dizer sobre a noite que passa depressa rumo a novas escuridões”. Isso dá ao relógio uma qualidade quase humana e destaca o papel do tempo como uma força inexorável na vida, tanto quanto é inexorável a presença da garota na vida de Montag.
Outros usos magistrais que Ray Bradbury faz de linguagem figurada são:
- Símiles: Um símile é uma comparação usando “como” ou “como se”. Bradbury usa símiles para descrever personagens e cenários de maneira muito mais vívida e/ou imersiva, veja o trecho: “era um rosto muito tênue, como o mostrador de um reloginho fracamente discernível num quarto escuro no meio da noite”;
- Hipérbole: A hipérbole é uma exageração deliberada para fins de ênfase ou humor. O escritor usa a hipérbole para intensificar as emoções e destacar os temas de suas histórias, veja: “o rosto da garota estava ali. Em sua memória, era um rosto lindo; na verdade, assombroso“;
- Alusão: Uma alusão é uma referência indireta a uma pessoa, lugar, evento ou obra literária. Ray frequentemente faz alusões a obras literárias e eventos históricos para adicionar camadas de significado a suas tramas. Não está no exemplo acima, mas neste mesmo livro, Fahrenheit 451, Bradbury faz uma referência à obra “Julius Caesar” de William Shakespeare, ao escrever: “os livros estão aqui para nos lembrar que somos tolos e idiotas. Eles são a guarda pretoriana de César, sussurrando enquanto o desfile ruge pela avenida, ‘Lembre-se, César, tu és mortal.’”. Essa passagem é uma alusão direta à famosa frase “Memento mori” que um servo supostamente sussurrava no ouvido de um general romano durante um triunfo, para lembrá-lo de sua mortalidade.
Dicas do menino que viverá para sempre!
Bradbury é considerado um dos maiores escritores dos EUA, e mais que merece o título.
Suas contribuições para a cultura literária são celebradas em todo o mundo. Para quem ama a ficção científica a ponto de se meter a escrevê-la, feito eu, Ray é quase um ente querido. Ao menos pra mim é assim.
Ray sorria fácil, não era à toa. Ele passou a vida fazendo o que amava, escrevendo todos os dias, na busca de seu sonho de viver para sempre nas páginas das histórias que criou. Conseguiu, nos legando, além de sua obra espetacular, dicas preciosas para quem sente-se em casa escrevendo, olha algumas delas aqui:
- Não deixe os outros julgarem você pelo que você ama: Ray Bradbury aprendeu desde cedo a não se importar com o que os outros pensavam dele. Ele acreditava que seus verdadeiros amigos não fariam piada dele por algo que ele amava tanto;
- Pratique todos os dias: o autor era um defensor da prática diária. Ele acreditava que a escrita deve ser uma parte diária da vida de uma escritora/escritor;
- Escreva rápido: Ray acreditava que escrever rápido pode ajudar a liberar sua criatividade e evitar o bloqueio de escrita;
- Leia poesia: Bradbury era um grande fã de poesia e acreditava que ela poderia ajudar a melhorar seu próprio estilo de escrita;
- Quando a criatividade ataca, aproveite o momento: o escritor acreditava que você deve aproveitar o momento quando a inspiração ataca e começar a escrever imediatamente;
- Uso de linguagem figurativa: ele faz uso frequente de símbolos e personificações em suas obras. Ele também é conhecido por suas descrições ricas em adjetivos, que dão às suas obras significados simbólicos;
- Permita os temas recorrentes: Ray é conhecido por explorar temas recorrentes em suas obras. Três dos temas mais proeminentes são o indivíduo versus a maquinaria, a natureza versus a ciência e a morte e o medo. Onde o indivíduo versus a maquinaria reflete a a dependência excessiva da tecnologia e como ela pode levar à alienação e à desumanização. A natureza versus a ciência destaca a tensão entre o mundo natural e o avanço da tecnologia, com Bradbury frequentemente posicionando a natureza como uma força poderosa e duradoura em contraste com a efemeridade da tecnologia humana. Finalmente, o tema da morte e do medo. Ele ocorre em muitas de suas obras, com Bradbury usando esses conceitos para explorar questões de auto crença, solidão e a natureza efêmera da existência humana.
Assim como termina Fahrenheit 451
Arrisco um spoiler. Tal qual o final de “Fahrenheit 451” descreve a destruição da cidade por uma bomba, retratando a autodestruição inevitável de uma sociedade opressiva, concluímos este artigo com certo pesar, pois falar de Ray e sua obra é sempre muito legal. No entanto, igualmente, o final da obra prima de Bradbury nos mostra a jornada de Montag e um grupo de intelectuais para reconstruir a sociedade, oferecendo, também, um vislumbre de esperança para um futuro mais filosófico, inteligente e justo. Do mesmo modo, o grande escritor nos lega a esperança de que podemos aprender com ele a mágica de fazer FC que encanta e promove a alma e nossa escrita aos abismos e infinitos que devemos explorar.
Após o spoiler, concluímos, então, que a essência da escrita de Ray está na sua capacidade de criar mundos fantásticos, mas ao mesmo tempo críticos e reflexivos sobre a sociedade, a cultura e a condição humana. Bradbury explorou temas como a censura, a alienação, a guerra, a tecnologia e a liberdade, usando uma linguagem poética e envolvente. Ele também foi um defensor da literatura como uma forma de resistência e expressão, que pode inspirar e transformar as pessoas.
Inspire-se nele, acrescente à essência da tua obra esses conceitos todos, faça muita Arte, desafie-se a encarar nos olhos, através da sua ficção, aquelas coisas que corroem e enaltecem a sociedade humana e o indivíduo, analise-as e critique-as com todo lirismo possível.
E leia bastante Ray também, faz um bem danado ao espírito.
Até a próxima,
Por Wagner RMS.
Algumas das fontes consultadas:
- Literary Writing Style of Ray Bradbury – Literary Devices;
- Ray Bradbury | Biography, Books, Fahrenheit 451, & Facts | Britannica;
- Fahrenheit 451: Allusions | SparkNotes.