A ficção científica nos permite viajar por mundos imaginários e conhecer diferentes culturas, inclusive a nossa, brasileira!
Neste artigo, vou examinar como o Brasil é retratado em algumas obras de ficção científica de outros países, tanto no cinema quanto na literatura. Analiso brevemente (não vou te entediar) se essas obras respeitam e valorizam a diversidade cultural brasileira ou se reforçam estereótipos e preconceitos. Elas exploram adequadamente as potencialidades e os desafios do Brasil como cenário e como protagonista da ficção científica? Por fim, vamos refletir juntos sobre como o Brasil na Ficção Científica pode contribuir para o enfrentamento dos desafios humanos nas próximas décadas.
Brasil na ficção científica audiovisual
- “Brazil” (1985):
Dirigido por Terry Gilliam, este filme é uma sátira distópica que retrata um futuro totalitário e burocrático, onde um homem comum luta contra o sistema opressivo. O título do filme foi inspirado na música “Aquarela do Brasil” e a trilha sonora inclui várias versões da música. Embora o filme não se passe no Brasil, a inclusão da música e o título sugerem uma conexão com a cultura brasileira. No entanto, essa conexão é superficial e estereotipada, pois o filme não explora os aspectos sociais, históricos e políticos do Brasil real. O filme pode ser visto como uma crítica à burocracia e corrupção política que afetam, entre outros países, o Brasil há décadas, mas também como uma forma de exotizar e simplificar a cultura brasileira, reduzindo-a a uma música famosa e às suas falhas evidentes. O filme poderia ter melhor representado a brasilidade se mostrasse as contradições, diversidades e riquezas da cultura brasileira, bem como os desafios e as esperanças do nosso povo. - “Black Mirror: Striking Vipers” (2019):
Episódio da série de ficção científica as consequências de uma tecnologia de realidade virtual em um jogo de luta. Parte das cenas foi filmada em São Paulo, mostrando locais como o Viaduto Santa Ifigênia, o Edifício Copan e a Avenida Paulista. O episódio aborda, de forma sutil, alguns aspectos da cultura brasileira, como a alegria e o colorido das ruas, a mistura de etnias e a influência da música e da dança na expressão dos sentimentos. O episódio provoca o espectador a refletir sobre os limites entre o real e o virtual, e sobre as implicações éticas e emocionais de uma tecnologia que permite escapar da rotina e experimentar novas sensações. No entanto, o episódio não explora muito a cultura brasileira, que fica restrita a alguns elementos visuais e sonoros. Seria interessante ver como o jogo de luta incorpora elementos da capoeira, uma arte marcial típica do Brasil. Assim, o episódio poderia valorizar mais a diversidade e a riqueza cultural do país, e não apenas usá-lo como um cenário exótico.. - “Orphan Black” (2013-2017):
A série canadense de ficção científica e suspense conta a história de Sarah Manning, uma órfã que descobre ser um clone e se envolve em uma conspiração sobre clonagem humana. A série inclui personagens brasileiros em diferentes temporadas, como Helena, uma clone religiosa e assassina com uma tatuagem em português; Tony, um clone transgênero que nasceu no Brasil; e Shay, uma ex-militar brasileira e terapeuta holística que se envolve com um dos clones. Embora a série mostre a diversidade dos personagens brasileiros, ela poderia explorar mais aspectos da cultura brasileira, como a relação com a natureza, a rica mitologia indígena e a influência africana na música e dança. - “Children of Men” (2006):
Baseado livremente no romance “The Children of Men”, de P. D. James, este filme é co-escrito e dirigido por Alfonso Cuarón e se passa em 2027, quando a humanidade está à beira da extinção devido à infertilidade global. Em uma cena, Jasper (Michael Caine), um ex-ativista e amigo de Theo (Clive Owen), comenta que o Brasil é um dos poucos países que ainda mantém um governo funcional, enquanto assiste a notícias sobre a morte do último humano nascido. O filme apresenta uma visão sombria e pessimista de um mundo onde a esperança parece ter se perdido. A menção ao Brasil como um dos poucos países que não desmoronou é uma forma de contrastar a situação caótica e violenta do Reino Unido, que se tornou um estado policial que reprime os imigrantes ilegais. No entanto, essa menção é muito breve e superficial, e não explora as possíveis causas e consequências da diferença entre os dois países. Seria interessante ver como o Brasil lidou com a crise da infertilidade e como isso afetou sua cultura, sua política e sua sociedade. Talvez o filme pudesse mostrar mais cenas ou imagens do Brasil, ou até mesmo incluir personagens brasileiros que interagissem com os protagonistas. Isso poderia enriquecer a narrativa e oferecer uma perspectiva mais diversa e complexa sobre o tema do filme.
Brasil na ficção científica literatura
- “Neuromancer” (1984) – William Gibson:
O livro introduziu conceitos revolucionários para a época, como inteligência artificial, cyberespaço, realidade virtual, implantes cibernéticos e ligações neurais entre personagens. Esses conceitos foram explorados por outros autores e influenciaram obras como Ghost in the Shell e Matrix. No romance, o Brasil é mencionado como um local onde a personagem principal se esconde. Gibson descreve a atmosfera caótica das favelas e a influência da cultura brasileira na cibernética, proporcionando uma visão intrigante do país. Seria interessante explorar mais a diversidade cultural brasileira e abordar elementos como a culinária, a literatura e as tradições folclóricas. - “Snow Crash” (1992) – Neal Stephenson: Neste livro de ficção científica, o autor cria um futuro distópico onde os Estados Unidos se fragmentaram em cidades-estado controladas por corporações privadas, mafiosos e mercenários. O Brasil faz parte da “Federação dos Estados Corporativos” (FEC), uma aliança de nações que domina a maior parte do mundo. O protagonista é Hiro Protagonist, um hacker e entregador de pizza que vive no metaverso, uma realidade virtual onde as pessoas interagem como avatares. Hiro se envolve em uma perigosa missão para combater um vírus chamado Snow Crash, que afeta tanto o mundo físico quanto o cibernético. No caminho, ele viaja para o Brasil e conhece personagens brasileiros, como o hacker Fisheye e a líder religiosa Ravena. O autor explora a influência cultural brasileira no contexto global, mas de forma negativa, retratando o país como um lugar violento, corrupto e dominado por seitas fanáticas que usam o vírus Snow Crash para manipular as massas.
- “Red Mars” (1992) – Kim Stanley Robinson:
Este romance de ficção científica narra a colonização e a terraformação de Marte por um grupo de cem colonos de várias nacionalidades, entre elas o Brasil. A obra aborda os desafios e conflitos enfrentados pelos colonos, que têm visões diferentes sobre a transformação de Marte em um planeta mais parecido com a Terra. Embora o autor tenha feito uma extensa pesquisa científica para escrever o livro, ele não explorou a diversidade cultural brasileira nem a sua relação com a natureza e a exploração sustentável dos recursos. Esses aspectos poderiam enriquecer a narrativa e mostrar como o Brasil tem uma cultura plural e racialmente diversa, fruto da mistura entre indígenas, portugueses, africanos e imigrantes de várias origens. Seria interessante também mostrar como os brasileiros valorizam a aparência, a saúde, o esporte e o lazer ao ar livre, características que poderiam influenciar na adaptação à vida em Marte. - “Speaker for the Dead” (1986) – Orson Scott Card:
O livro “O Orador dos Mortos” de Orson Scott Card é o segundo livro da saga de Ender Wiggin, que salvou a humanidade de uma invasão dos Insectas, uma espécie alienígena hostil. Nesta sequência, Ender se torna um orador dos mortos, um pregador que viaja pelo universo para contar a história verdadeira das pessoas que morreram, sem omitir seus defeitos e virtudes. Sua missão o leva ao planeta Lusitânia, habitado por colonos de origem brasileira, que convivem com uma nova raça inteligente, os pequeninos, que têm uma forma de vida peculiar e misteriosa. Ender se depara com um conflito entre os humanos e os pequeninos, provocado pela morte brutal de um antropólogo que tentava compreender os seres peludos. O livro aborda questões como a tolerância, a autodeterminação e o respeito pelas diferenças culturais e biológicas. O autor constrói um cenário rico e complexo, com personagens bem desenvolvidos e dilemas morais e pessoais. A influência do Brasil na colonização de Lusitânia é evidente na língua portuguesa, nos nomes dos lugares e das pessoas, na religião católica e na música popular. Porém, o autor também revela alguns estereótipos e preconceitos sobre a cultura brasileira, como a sexualidade excessiva, a corrupção política e a falta de organização social. Card poderia representar melhor a cultura brasileira no livro se ele mostrasse mais aspectos positivos e diversificados da nossa identidade nacional verde-e-amarela, como a criatividade, a solidariedade, a pluralidade étnica e cultural, a riqueza histórica e artística, entre outros.
Protagonistas do futuro precisam se ver nele
Nossa representatividade no que vai acontecer de extraordinário na ciência e na construção do futuro, segundo vimos a presença brasileiras nas obras acima, é praticamente nula, mesmo que nem sempre negativa. Segundo a literatura acerca do futuro e do extraordinário, o Brasil será, eternamente, um coadjuvante no palco do mundo. Será somente esse o nosso destino?
A ficção científica é um gênero que permite explorar as possibilidades do futuro e do fantástico, refletindo sobre as questões do presente e da identidade, e construindo o arcabouço cultural que prepara as comunidades que desse gênero literário usufruem, para o que de surpreendente, excitante e, geralmente, perigoso que vem por aí.
O historiador Yuval Harari, autor de best-sellers como Sapiens e Homo Deus, mostra como a capacidade de criar ficções foi fundamental para a história da humanidade, desde a Revolução Cognitiva até a Revolução Científica. Ele também defende que a ficção científica é uma ferramenta poderosa para entender os desafios atuais e futuros da humanidade, como as mudanças climáticas, a inteligência artificial e a biotecnologia.
Portanto, nós, brasileiros, devemos nos engajar mais nesse gênero, tanto como leitores quanto como autores ou produtores audiovisuais. Precisamos, nós mesmos, e não somente os outros povos enquanto falam sobre nós, construirmos nosso imaginário e daí nossa futura realidade. Uma realidade sobre, por exemplo, como poderemos ser líderes mundiais na superação dos desafios humanitários que o aquecimento do planeta Terra fará a humanidade encarar. Nosso governo sinaliza interesse de seguir nessa direção, então vamos escrever e consumir obras nossas, que testem essas possiblidades, falando de possíveis fracassos e vitórias.
Ao consumir, escrever e produzir mais ficção científica que alcance o mercado internacional, podemos representar nossa cultura com mais riqueza e consistência, sem estereótipos, pois vivemos a nós mesmos “na pele”, com virtudes e falhas, e, assim, podemos contribuir para o debate global sobre os rumos da humanidade no século XXI.
A ficção científica brasileira, aliás, já tem uma bela história para mais de século, onde encontramos autoras e autores consagrados e novos talentos que merecem ser lidos e assistidos “pra ontem”. Segundo a pesquisadora e professora da Universidade da Flórida, nos EUA, Mary Elizabeth Ginway, a ficção científica brasileira pode ser dividida em quatro fases: a primeira, de 1875 a 1957, marcada por obras isoladas e influenciadas pelo modelo europeu; a segunda, de 1958 a 1971, caracterizada pela influência norte-americana e pela publicação de antologias; a terceira, de 1972 a 1981, marcada pela consolidação de autores como André Carneiro e Dinah Silveira de Queiroz; e a quarta, de 1982 até os dias atuais, caracterizada pela diversificação temática e estilística, com destaque para autores como Braulio Tavares, Ivan Carlos Regina e Roberto de Sousa Causo. Eu mesmo e muitos outros escritores e escritoras brasileiras estamos, sempre, levando a chama adiante; no entanto, é preciso superar obstáculos que impedem uma maior visibilidade e reconhecimento das obras nacionais, que muitas vezes são marginalizadas ou ignoradas pelo mercado e pela crítica.
Cada povo precisa da ficção científica como ferramenta importante para ver a si mesmo como protagonista do futuro e do extraordinário, e o Brasil não é exceção.
Por Wagner RMS.