Para que um povo encontre seu lugar na odisseia humana, como protagonista do seu futuro, superando os desafios extraordinários e imprevisíveis que o amanhã sempre nos traz, este povo precisa conseguir enxergar a si mesmo lá, e sonhar consigo mesmo e com sua cultura experimentando este futuro. O melhor veículo para isso é a ficção científica.
Wagner RMS
A ficção científica é um gênero literário e cinematográfico que cativa milhões de pessoas ao redor do mundo, minha própria infância e juventude guardam encontros fascinantes com o gênero. Mas é inegável que sua expressão na cultura brasileira difere consideravelmente da cultura norte-americana. Aqui tem gente apaixonada por FC, lá é um mercado crescente! Esta disparidade levanta questões sobre os fatores que influenciam essa diferença de popularidade e reconhecimento no Brasil.
Um dos principais motivos para essa discrepância, creio, pode ser atribuído às divergências históricas e culturais entre os dois países. A Ficção Científica teve seu florescimento na cultura norte-americana no século XX, período marcado pela Guerra Fria, corrida espacial e avanços tecnológicos, eventos em que o povo dos EUA foi, muitas vezes, protagonista. Esses eventos impulsionaram a imaginação dos escritores e cineastas, que criaram narrativas futuristas e exploraram temas como viagens espaciais, inteligência artificial e distopias. A cultura norte-americana abraçou essas ideias, tornando a Ficção Científica um elemento essencial de sua identidade cultural.
Mais ao sul, a História foi outra
No entanto, a história brasileira teve suas próprias particularidades e dores, com desafios e acontecimentos diferentes. O Brasil passou por períodos de ditadura militar, instabilidade política e questões socioeconômicas complexas. Está aqui o Rio de Janeiro, uma verdadeira zona de combate urbano, para provar o quão complexas sãos as questões brasileiras, uma amálgama de incidentes históricos, injustiças sociais, deformidades no comportamento e nas vontades de nossas lideranças e cidadãos. Essas circunstâncias, distribuída em maior ou menor grau e com peculiaridades regionais no país inteiro, podem ter influenciado o desenvolvimento de uma cultura menos voltada para a Ficção Científica e mais focada em outros temas, como dramas sociais, sátiras políticas e questões existenciais.
Além disso, é importante considerar a falta de investimento e incentivo à produção de conteúdo de Ficção Científica no Brasil. Nos Estados Unidos têm uma indústria cinematográfica e editorial poderosa e bem estabelecida, com investimentos inclusive governamentais ocorrendo há décadas, por meio de agencias como por exemplo o National Endowment for the Arts (NEA) e o National Endowment for the Humanities (NEH), que oferecem subsídios e financiamentos para projetos artísticos, incluindo obras e eventos de ficção científica. Já o Brasil ainda enfrenta desafios na área cultural, incluindo a falta de financiamentos públicos e privados específicos para projetos de FC e a escassez de espaços para a divulgação e discussão desse gênero.
Um diagnóstico Possível
Acredito que isso ocorre por causa de uma miopia sobre a importância de se planejar o futuro como o atleta planeja seu desempenho e sua vitória: com o processo de visualização. É preciso fazer governos e formadores de opinião entenderem que um povo precisa se visualizar no futuro para de fato chegar a ele, e temos que aproveitar, para isso, a ficção científica e sua capacidade de nos levar ao futuro e ao extraordinário.
E por falar em nosso povo, outro fator relevante é o público consumidor. A cultura norte-americana tem uma longa tradição de apreciação da FC, o que estimula a produção de conteúdo e, por sua vez, aumenta a demanda. No Brasil, embora haja um público apreciador de ficção científica, ele pode ser consideravelmente menor em comparação com outros gêneros, o que pode limitar o alcance e a influência desse tipo de narrativa.
Inegável, as gentes do Brasil não desistem nunca!
Apesar dessas diferenças, é importante destacar que a Ficção Científica brasileira tem conquistado seu espaço e ganhado reconhecimento gradualmente. Autores e cineastas brasileiros têm explorado temáticas futuristas, distopias e avanços tecnológicos em suas obras, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento do gênero no país.
Na literatura, podemos listar alguns autores e livros que se destacaram na produção de ficção científica nacional. Um deles é o expressivo escritor Tadeu Loppara, autor paulistano da onda atual da FC brasileira que escreveu Quãm e os Indícios Mortais. O romance mistura ficção e aventura e se passa num futuro distante, com avanços não apenas tecnológicos, mas também espirituais e mentais, quando o Brasil, já não existindo, surge por suas fortes influências culturais. A história aborda o cotidiano de uma nova sociedade humana em Titã, Marte, Lua e Terra. Outro importante representante da nossa FC é Jorge Luiz Calife, que escreveu a trilogia Padrões de Contato, publicada entre 2004 e 2007, que narra a chegada de uma sonda alienígena à Terra e as consequências para a humanidade. Há o Fábio Kabral, que lançou em 2018 o livro O Caçador Cibernético da Rua Treze, um romance afrofuturista que mistura elementos da mitologia iorubá com um cenário tecnológico em São Paulo.
Destaque para um excelente exemplo do que eu digo: que o extraordinário tem que acontecer na nossa realidade, nas nossas vizinhanças, veja o trabalho da autora carioca Laura Freignham, que escreveu Nova Drasskun: O Despertar da Híbrida, livro no qual uma jovem solitária tenta esconder dos amigos ricos da faculdade que mora em uma típica favela carioca e, sem aviso, ela tem sua vida salva por uma criatura assustadoramente fantástica que a arremessa em uma realidade nova e inacreditável.
Falamos todas as linguagens que a FC alcança
Nos quadrinhos, há vários exemplos de obras de ficção científica brasileira que ganharam destaque nos últimos anos. Um deles é A Samurai: Primeira Batalha, de Mylle Silva e Má Matiazi, publicado em 2016, que conta a história de Michiko, uma samurai ciborgue que luta contra um império opressor. Outro é O Astronauta: Singularidade, de Danilo Beyruth e Cris Peter, publicado em 2016, que faz parte da série Graphic MSP e mostra as aventuras do personagem clássico de Mauricio de Sousa em uma missão espacial. O Quarto Vivente, de Luciano Salles, publicado em 2013, retrata um futuro distópico onde as pessoas são controladas por uma corporação. Yeshuah: Onde Tudo Está, de Laudo Ferreira Jr., publicado em 2012, que reimagina a vida de Jesus Cristo em um contexto futurista.
No cinema e no streaming, também há produções de ficção científica brasileira que merecem atenção. Uma delas sãos os trabalhos da premiada dupla Flávio Langoni & Lívia Pinuad, criadores da impactante Kilmerson Dreams Produções. Entre outras obras internacionalmente premiadas, o casal criou a série Nomade 7 que você pode assistir na Amazon Prime Vídeo. Eu tive o privilégio de ajudar com os roteiros desta e de algumas outras obras deles.
Mas ainda é pouco, a gente quer mais
A baixa expressão da ficção científica na cultura brasileira, em comparação com a cultura norte-americana, ocorre por causa de uma combinação de fatores históricos, culturais e estruturais, mas essas condições mudam com o tempo e com ações positivas de pessoas e governos. Algumas ações possíveis:
- Incentivar a produção nacional: é essencial estimular e investir na produção de conteúdo brasileiro de ficção científica, tanto na literatura quanto no cinema e audiovisual. Será importante a implementação de políticas de financiamento, programas de apoio e concursos que incentivem a criação de obras nacionais dentro desse gênero;
- Ampliar o acesso ao conteúdo: é importante promover o acesso ao conteúdo de ficção científica, disponibilizando obras nacionais e internacionais em livrarias, bibliotecas, plataformas de streaming e cinemas. Além disso, é fundamental investir em traduções e adaptações de obras estrangeiras para que o público brasileiro possa ter acesso a uma variedade de narrativas e estilos dentro do gênero;
- Estimular espaços de discussão e debate. É necessário criar espaços para que os fãs e criadores de FC possam se encontrar, compartilhar ideias, discutir e disseminar o gênero. Importante acontecer convenções, eventos, painéis e fóruns de discussão, tanto presenciais quanto online;
- Incluir a ficção científica na educação: introduzir a ficção científica nos currículos escolares e acadêmicos pode ajudar a aumentar o interesse e o conhecimento sobre o gênero desde cedo. Acredito que ações importantes seriam a inclusão de obras de ficção científica em bibliotecas públicas (destaque para obras brasileiras) e em listas de leitura, discussões em sala de aula e criação de disciplinas ou cursos específicos sobre o tema;
- Valorizar e premiar a produção nacional: reconhecer e premiar o talento nacional na área da ficção científica é fundamental para incentivar os criadores brasileiros. Sugiro premiações específicas para o gênero, como concursos literários e festivais de cinema, além de contemplar a FC em prêmios já existentes;
- Estimular a diversidade: é importante garantir a representatividade e diversidade de vozes dentro da FC brasileira. Isso inclui apoiar e promover obras de autores e autoras de diferentes origens, gêneros, raças e orientações sexuais, e explorar temáticas relevantes para a realidade brasileira.
Para estar no futuro, você tem que se visualizar nele
Essas ações e outras mais, em conjunto, podem contribuir para que a ficção científica tenha, com o tempo, uma expressão cultural no Brasil tão importante quanto a que possui na cultura norte-americana, estimulando a criação, o consumo e o reconhecimento do gênero em nosso país.
A ficção científica é um gênero que explora as possibilidades e os impactos da ciência e da tecnologia na sociedade e no indivíduo. Ela nos permite imaginar cenários alternativos, questionar nossas certezas e valores, e refletir sobre as consequências de nossas escolhas. A FC é, portanto, um instrumento valioso para que um povo se prepare para desafios futuros em sua sociedade, pois estimula a criatividade, a curiosidade, o pensamento crítico e a consciência social. A ficção científica, bem construída, nos ajuda a antecipar problemas, buscar soluções, e sonhar com um mundo melhor.
E os sonhos são matéria prima essencial na construção de novas e empolgantes realidades.
Por Wagner RMS.