Meus caros leitores, partilho hoje com vocês este conto de ficção científica Quietude parte 1 (a segunda parte posto no próximo sábado), espero que curtam, é uma das primeiras obras criadas quando se reuniam os membros da Real Sociedade dos Escritores Fantasmas.
Ludmila piscou algumas vezes. Havia usado um prendedor de roupas para fixar a cortina de seu quarto, de modo a luz do sol não entrar logo pela manhã. Mas o ventilador de teto fez a cortina arrancar o pregador. Seu quarto de pensão ficava voltado para o raiar do dia, e raramente ela conseguia dormir além das sete da manhã, quando o clarão ígneo irrompia no cômodo e se derramava sobre ela. Prática e econômica, não alugava um quarto caro, mesmo tendo dinheiro para isso.
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Mhd Ahmed Qanbar havia sonhado novamente com a guerra. Estava exausto quando acordou. Fazia muitos anos que dormia a base de remédios, e não descansava quase nada em seus sonhos. Suas mãos tremiam quando saiu da cama e cambaleou até o banheiro, que estava inundado pela luz do sol tropical que entrava pelo basculante. Ahmed fez sua ablução cuidadosamente. Então, tomando o Corão, voltado para o oriente distante, orou:
— Allahu Akbar. _ Disse, com a voz rouca. Era preciso desligar sua mente dos eventos deste dia fatídico que se iniciava.
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A moça se levantou, e espreguiçou o corpo claro. Era um dia de trabalhos, muitos, mas desejava ter perdido a hora, por isso “esqueceu” de programar o rádio relógio e tentou impedir o sol de nascer. Não adiantou. Mas, por outro lado, era bom estar livre dos umbrais escuros de pesadelos e traumas que era seu sonho desde onze de fevereiro de nove anos atrás, quando… Quando Luana e Ricardo morreram nos atentados a bomba em Madri. Ela tomou seus comprimidos azuis e, um pouco mais calma, relembrou o terror…
Ludmila estava esperando por eles na San Ginés.
Desde que Laden havia perecido finalmente, alcançado pelas garras do grande satã, ele, Mhd Ahmed, havia sido eleito informalmente por todos os outros como um líder. Para muitos, foi o momento em que a causa se perdeu, para outros, o dia em que a luz da razão brilhou nos olhos dos Guerreiros de Alah. O fato é que Mhd Ahmed era um homem ponderado, menos afeto a eloquência dos atentados, e muito mais disposto a negociar. Pelo menos até ontem à noite, quando seu primo, Moqtada Al Qanbar, lhe mostrou os documentos que provavam que o grande satã havia desenvolvido a arma final.
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Ela queria muitos doces para o marido e a filha. Queria uma vida adocicada. Fora uma vida difícil até então, havia chegado a Europa como imigrante ilegal, e trabalhara em muitas coisas, algumas que ela preferia não lembrar, até o dia em que havia fugido de um tarado e pedia carona em uma estrada deserta em Cherez de La Frontera, e esbarrou (ou foi gentilmente levada pela mão do destino) com Ricardo. Fiscal de obras, ele dirigia um fora de estrada e a ajudou. Homem também castigado pela vida, Ricardo era divorciado e tinha receio que a psicose da ex-mulher o alcançasse, então ele vivia de cidade em cidade, percorrendo o país e fazendo manutenção de túneis de fibras óticas para uma grande companhia.
Após quatro horas de viagem, e duas vidas partilhadas em uma longa e divertida conversa, sorriram um para o outro, e sabiam, intimamente, que iriam se ver novamente. Viram-se, casaram-se, e tinham uma linda filha, quando as prateleiras da San Ginés vibraram, anunciando a carnificina.
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Mhd Ahmed então percebeu, horrorizado, que finalmente, baseado nos grandes conflitos que incendiavam a Europa hoje, e a participação dos Guerreiros de Alah em combates estratégicos nas ruínas de Israel, o grande satã tinha o apoio da opinião pública necessário para exterminar o Islã com sua arma final. Era preciso detê-los, e a reunião do dia seguinte seria o único dia em que isto poderia acontecer.
— Moqtada, sou ponderador, sabe disso.
— Sim, Ahmed. Sei disso. Mas Alah fez com que estes documentos viessem as suas mãos talvez por isto mesmo. Veja, os malditos aniquilam toda a gente do oriente, e ficam com as terras de nossos ancestrais para si. Depois o que vai ser mais? Este Brasil e sua preciosa água? Todo o mundo? Satã estende suas garras horrendas sobre todos nós, e Alah pôs a decisão do que fazer quanto a isso em suas mãos. Estarão todos juntos esta noite, os líderes de nosso povo e os do ocidente. Amanhã. Não haverá momento melhor, nunca mais.
— Sim… Sim… Desde Madri que não sou forçado a tomar uma decisão tão terrível, primo.
— Como lhe prometi, mantive silêncio sobre Madri até hoje. Mas agora não há como não dizer: será covarde de novo, Ahmed? Vai virar as costas ao sofrimento e ao sangue?
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Foi horrível tentar esquecer o que viu em Madri. Ludmila levou um ano para parar de chorar. Outro ano para evitar o suicídio, e um ano mais ainda para começar a perceber que deveria ter um propósito, deveria andar, ir adiante, viver.
Ela pegou suas câmeras, verificou as conexões com a Internet delas, e guardou seu smartphone na bolsa, junto com um milhão de outras coisas guardadas em uma típica bolsa de mulher. Estava quase pronta, havia conseguido se concentrar nos afazeres do dia, apesar do tormento das lembranças, e tomou seu banho, pôs um vestido elegante e leve, pois era verão no Rio de Janeiro, e arrumou documentos e ferramentas de trabalho. Ela estava no Rio, a princípio, para cobrir a Cúpula do Oriente Médio, que reuniria no Brasil líderes de todos os países daquela região em um encontro para discutir medidas para acabar com a guerrilha na Europa e em Moscou. Ludmila era uma das melhores fotógrafas freelance da Alemanha.
Ela passava batom, quando se viu no espelho do pequeno banheiro. Estava chorando ainda, lágrimas quentes e amargas percorriam seu pálido rosto. Ela parecia agora uma madona. Pegou mais comprimidos azuis e os engoliu avidamente.
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Não demorou muito a tomar a decisão. Não havia outro que pudesse fazer aquilo. Ele, Mhd, estaria bem no meio de tudo, e de lá poderia disparar a bomba. Acordou, orou e meditou durante o dia, e chegando a hora, armou-se do que era necessário, e partiu para a Cúpula. Mhd Ahmed tinha o hábito de ser prático, e de agir sem pestanejar quando necessário. Dentro do carro oficial que o estava levando como representante da Al Qaeda para os diálogos de paz, ele vestiu o colete, verificou se tinha tudo que precisava a mão, respirou fundo e lembrou Madri. Naquela época sua decisão foi outra, ele achava.
Continue na parte 2, já disponível, clique aqui.
Nota:
Allahu Akbar : Deus é Grande (http://pt.wikipedia.org/wiki/Takbir).