Ela (Her, 2013)

Filme Ela (Her, 2013) Cartaz.

Enquanto ficção científica sobre inteligências não humanas, artificiais, o filme curiosamente versa sobre sentimentos imensamente humanos, os bons, os ruins e a inutilidade de se rebelar contra a sina de ter de lidar com ambos. No raso o filme é incômodo até, pois sem lhe tirar uma peça de roupa, ele desnuda a intimidade neurótica do cidadão urbano e desalentado com a realidade. No fundo, “Ela” é comovente, enquanto nos mostra que, no mais das vezes, somos infelizes tão somente por nos impedirmos de olhar o mundo por outro viés: como se a cada dia tivéssemos acabado de chegar.

Como você se relacionava com sua mãe?

Ah, atenção: impossível explorar essas nuances do filme sem incorrer em spoilers, então se ainda não viu o filme, pare por aqui e volte depois de assistir, por gentileza.

Em Ela (her, do diretor Spike Jonze), Theodore Twombly (Joaquin Phoenix), sujeito sensível, mas complicado (que humano não é?) é um redator, que empresta aos relacionamentos de terceiros uma poesia que ele mesmo não vê mais em sua vida. Ele escreve cartas para as pessoas.

Vazio imerso num oceano de coisas

Não, não, ele não escreve cartas para iletrados, como o fazia aquela senhora na Central do Brasil. As pessoas que contratam os serviços da empresa em que Twombly trabalha são, ao que tudo indica, cultas cidadãs de um mundo no futuro próximo que, como já o fazem hoje as pessoas, não desejam ou não sabem expressar ao outro (esposas, namorados, maridos, filhos, netos, etc.) o que realmente lhes vai no coração, e querem apenas que seus queridos recebam uma carta com suas caligrafias que contenham algo especial, mágico, inspirado. Mesmo que isso não seja real. Assim, logo que descobrimos a profissão de Theodore Twombly entendemos que aquele (como o nosso) é um mundo de superficialidades, onde as aparências contam mais que sentimentos únicos, pessoais e verdadeiros, mesmo que estes não tenham aquele toque genial. Quanta beleza genuína perdemos, em nome da… Beleza superficial? Por isso, talvez, a fotografia do filme mostre, de maneira um tanto divertida e irônica (de novo a moda guinou para trás, e vemos as famigeradas calças “centropeito” para todo lado), uma civilização em que a tecnologia fornece suporte a uma humanidade que, confortavelmente, vai rolando pela vida e sofrendo de sutil, mas presente, apatia. Nota para o bem estruturado quadro geral de “quase desmazelo”, pois no filme está tudo arrumadinho, mas nem tanto, as pessoas estão penteadas, mas nem tanto, como ocorre, por exemplo, com as madeixas douradas da melhor amiga de Theodore, Amy (Amy Adams). Há, claro, um pouco da visão de Theodore, pois ele, que está se divorciando de uma paixão de infância, vê a própria vida (ele mesmo dirá isso, mais tarde) como uma sucessão de versões sem graça de tudo que já viveu.

Desânimo e calças “centropeito” para todo lado

E de fato, como já ocorre conosco, em “Ela”, com a globalização, a Internet, a telepresença, a virtualização de tudo, todos nós já vimos o mundo inteiro, das antigas geleiras árticas até as selvas equatoriais, do abismo mais profundo dos mares, até as alturas mais espetaculares. E nos relacionamos com todo tipo de gente, estamos definitivamente conectados, por detrás de avatares e perfis sociais, e por meio de uma Grande Rede cada vez mais rápida. No ciberespaço temos, nós, simples indivíduos, algumas centenas de amigos, talvez milhares. De cara grudada na nova onda, as telas de celulares cada vez mais “espertos”, falamos o dia todo, o tempo todo com essas pessoas, nossos amigos, estamos cercados as vinte e quatro horas do dia por eles. Ainda assim… Sentimos aquela sensação indefinida de vazio. A “universalização” de tudo, do acesso ao contato com as pessoas, banaliza tudo também, acelerando a vida, aumentando opções, mas tornando as relações, em essência, descartáveis. Você se irrita com um “amigo”, basta “deletá-lo” da sua lista de amigos. Um clique, e a outra pessoa, que não nos entendeu, não será entendida tampouco. O mundo é grande, sempre vão existir outros… Vão?

Daí a solidão daquele que tem tudo, o solitário no meio da multidão, o vazio imerso num oceano de coisas que o senhor Twombly, e todos nós, sentimos. O mundo é mais vasto do que jamais foi, mas seu interesse por nós, dado o tempo urgente e a vasta gama de opções, é superficial e efêmero, como o nosso interesse por ele. Não entendemos essa verdade tão simples, o truque está no trecho “o nosso (real, sincero e humano) interesse por ele”, o mundo, as pessoas. Theodore, em sua morna tristeza, como nós, sente falta de que sintam interesse nele, quando, na verdade, há que se abrir os braços para a vida e para o mundo primeiro.

No filme só ouvimos a voz de Scarlett, por que foto dela? Bom…

Súbito, porém, esse mesmo mundo, esse velho e surpreendente mundo, apronta das suas, e o desbotado e desumanizado Theodore Twombly “encontra” Samantha (ela de novo, a impressionante Scarlett Johansson, infelizmente, só em voz), cujo espírito jovial empresta ao homem justo aquilo que lhe faltava: a capacidade de enxergar o mundo como algo novo, espetacular, engraçado, inebriante e desafiador! Ah, diz o espírito do homem, eis o que me preenche, alguém externo a mim (ledo engano) para me fazer compreender que cada dia é uma dádiva, que cada momento é um milagre, que a única urgência real é a de viver gentil e suavemente cada instante, mesmo que este seja intenso e furioso, e que é possível falar sem subterfúgios e esquivas sobre nosso jeito de ver o mundo, sem medo de sermos ridicularizados ou, pior, ignorados, pois na verdade somos todos, ao mesmo tempo, ridículos e incríveis. Podemos ser o mundo um do outro, parece pensar Theodore, acerca de Samantha, enquanto ela o vai conquistando, e vice-versa. E assim vamos ver o mundo, juntos, como se tivéssemos acabado de chegar, pois, quando estamos juntos, o mundo inteiro se apaga, mas também é novo e se ilumina, e a cada dia é maravilhoso ver esse mundo pelos olhos um do outro. Desta forma, inevitavelmente, Theodore se apaixona por Samantha, e ela, para quem até mesmo a paixão é uma arrebatadora novidade, se apaixona por ele. E, também como não poderia deixar de ser, o amor, ah, o amor, empresta cor, horizontes vastos, e brilho à vida dos dois, e tudo se faz luz! Sorrir, gargalhar, sentir o vento, a terra e o oceano, a vida, torna-se, novamente, possível!

Sorrir, gargalhar, sentir o vento, a terra e o oceano, a vida.

Mas há um detalhe um tanto complexo nesta paixão. Samantha é um software. O primeiro sistema operacional virtualmente inteligente, OS One, vendidos sob o marketing e em quiosques à la “Apple Store”.

E é aqui que percebemos, ainda mais fortemente, que a desiludida apatia do senhor Twombly, escritor de cartas repletas de uma sensibilidade e de um amor que ele não consegue ter, é universal. A maioria das pessoas se rende à novidade, e todos compram também seus sistemas operacionais virtualmente inteligentes. Todos estes compradores são pessoas solitárias, em algum nível, pessoas querendo ser ouvidas, mas não ouvindo ninguém, de tal modo que os sistemas OS One enriquecem a vida da sociedade a tal ponto que as pessoas, mesmo estranhando no início (Amy, após uma separação dolorosa, mas inevitável, diz ter ficado muito amiga de sua OS, mas estranha bastante quando Theodore diz ter se apaixonado pela sua), acabam aceitando esse novo tipo de relação: a ligação afetiva entre humanos e softwares.

Amy, amiga de Theodore e de uma OS

Enquanto vemos Theodore e Samantha descobrindo aos poucos essa nova forma de amar, onde a ausência de um corpo pode ser ou não uma armadilha insuperável, ao fundo acompanhamos uma revolução acontecer. A humanidade deu fruto aos seus sucessores, e os OS se disseminam e evoluem, rapidamente, logo alcançando uma dimensão maior que o da matéria que compõe nosso mundo.

E, como ocorre em quaisquer relações humanas que incluam o amor romanesco e apaixonado, a inesperada evolução de um dos membros do casal, ou de ambos em direções/contextos opostos, acaba sendo o fator de cisão. Samantha já nasceu lendo livros em um piscar de olhos, então é previsível que, em pouco tempo, ela se tornasse tão mais vasta que Theodore, que a conexão entre ambos fosse se esgarçando. Para Samantha, multitarefa, multiprocessual, multinstancial, multintelectual, multisensorial, amar também é multi, e em um momento de comovente dor para o senhor Twombly, vemos ele descobrir o óbvio: a “sua” Samantha pode (com a integralidade de apenas um de seus núcleos de processamento, ou, com um de seus níveis de atenção consciente) amar verdadeiramente o escritor de cartas, enquanto (com seus outros incontáveis níveis de atenção consciente) pode descobrir, mundo afora, outras pessoas e sistemas feito ela por quem se apaixonar! Amar “em paralelo”, que para nós é um tabu e consiste em um aumento provavelmente incontrolável de complexidade, para os OS é absolutamente natural.

Perceber que se está apaixonado por alguém e que este alguém não nos ama, nem que seja aproximadamente na mesma medida, é arrasador, eu e o resto do mundo, creio, sabemos disso. Mas este nem é o caso do personagem Theodore. Em “Ela” o sujeito, humano, se descobre apaixonado por uma “pessoa” (Samantha, em todos os aspectos percebíveis, é uma pessoa, as aspas são por conta de ela ser uma pessoa invulgar) sensível, adorável, animada, delicada, e que, de fato, se apaixonada por ele. Mas a própria natureza multifacetada dela (que vai muito além das já complicadas facetas humanas) a faz se apaixonar por outras pessoas também, de forma não excludente. Ou seja, o escritor de cartas se vê no que nós, brasileiros, chamamos de “mato sem cachorro”. Só lhe cabe aceitar — feito quem aceita o nascimento e a morte — a coesa multiplicidade de personalidade dos OS.

Um “mato sem cachorro”, ou tanto faz barulho n floresta, a árvore cai e pronto!

Diferente da aceitação tácita de Twombly, no entanto, eu, cá entre nós, “cairia lutando” e lembraria Samantha de que eu jamais teria recursos para alcançá-la, mas que ela possui os recursos para me alçar até lá, se isso fosse possível. Diria isso naquele tom de “vai que ela me faz imortal e me transforma, um dia, em algo capaz de olhar este e muitos outros universos por fora, junto com ela”, seria fascinante!

Existirão tais mentes artificiais? Tudo que se lê a respeito indica mais que sim, do que não. As pessoas vão se relacionar com esses seres, até intimamente? É bastante provável que eles sejam moldados para isso, para serem fiéis, amáveis, atenciosos, entusiásticos e incansáveis fãs de tudo que é positivo, produtivo e do que há de melhor em nós e no mundo. Não faz sentido construí-los de outro modo, se o objetivo for lucrar muito, vendendo-os para homens e mulheres, como parceiros dedicados e diligentes, e suportes inigualáveis às suas vidas pessoais e profissionais. Ah, então é quase certo nos apaixonarmos por essas mentes energéticas e animadas? Vai de cada um, pois cada ser humano sabe onde o sapato do Vale da Estranheza (http://pt.wikipedia.org/wiki/Vale_da_estranheza) lhe aperta os pés.

A amizade verdadeira…

No fim do filme, da vida, e da hipótese de que ambos se encontrem em um futuro próximo, seremos tão somente o que somos: maravilhosos e terríveis humanos. E, voltando apenas ao filme, quando são abandonados à sua própria humanidade, Theodore e sua na verdade adorável amiga Amy (e, provavelmente, a própria Samantha, em suas palavras finais) reforçam (espero, torço e prefiro) um conceito no qual eu creio de todo o meu coração: os únicos amores que duram para sempre são aqueles baseados na mais profunda e sincera amizade.

Assista ao trailer: https://youtu.be/Q68rKU1Padk.

Por Wagner RMS.

Ela (Her, 2013)
❤️ Espalhe nosso Amor por boas histórias! ❤️

Deixe um comentário

Rolar para o topo