Há uma magia particular que acontece quando o fantástico invade o familiar. Não a magia de terras distantes com nomes impronunciáveis, mas aquela que irrompe numa esquina movimentada de São Paulo, que se esconde nos becos históricos de Salvador ou que conspira nos corredores do poder em Brasília. Este é o território da Fantasia Urbana, um gênero que, nos últimos anos, deixou de ser um nicho para se tornar uma força pulsante na literatura brasileira. Mas por que essa fusão do cotidiano com o extraordinário ressoa tão profundamente conosco? E onde uma obra como o meu livro, Mônica, se insere nesse movimento?
Para entender essa ascensão, precisamos primeiro reconhecer o que a Fantasia Urbana nos oferece. Diferente da fantasia épica, que nos transporta para mundos completamente novos, a urbana traz o impossível para o nosso quintal. Ela nos sussurra que, se olharmos com atenção, a realidade que julgamos conhecer pode ter fissuras, e nessas fissuras habitam deuses esquecidos, criaturas míticas e portais para outros lugares. É um convite para reimaginar nosso próprio espaço, para ver o maravilhoso no mundano.
O Extraordinário Acontece Aqui!
Essa proposta encontrou um terreno fértil no Brasil. Somos um país sincrético por natureza, onde o sagrado e o profano convivem, onde as lendas do folclore ainda ecoam nas conversas e onde a própria realidade muitas vezes parece desafiar a lógica. A Fantasia Urbana, portanto, não precisa se esforçar muito para nos convencer de sua premissa; ela apenas dá forma a uma sensibilidade que já nos é intrínseca. Autores pioneiros como André Vianco, por exemplo, entenderam isso perfeitamente ao soltar seus vampiros pelas ruas de Osasco, provando que o sombrio e o sobrenatural não eram exclusividade dos castelos da Transilvânia. Ele, e outros que o seguiram, como Eduardo Spohr com sua mitologia angelical , abriram as portas para que uma nova geração de escritores e leitores pudesse explorar o fantástico com um sotaque inconfundivelmente nosso.
A Fantasia Urbana como Espelho da Realidade Brasileira
O verdadeiro poder do gênero, no entanto, vai além do escapismo. As melhores obras de fantasia urbana funcionam como um espelho distorcido, mas estranhamente fiel, da nossa sociedade. Elas usam o véu do sobrenatural para discutir questões muito humanas e muito brasileiras: desigualdade social, violência, corrupção, a complexa teia de nosso poder político e, crucialmente, as cicatrizes da nossa história.
É exatamente neste ponto, na intersecção entre o fantástico e o histórico, que eu busquei situar a jornada da minha protagonista. Mas a verdade é que a semente dessa história é ainda mais antiga, nascida não como um romance, mas como um conto. Um conto sobre uma jovem chamada Mônica Alencar Deveraux, nascida no Rio de Janeiro dos anos 1940, em uma pobre família de lavradores na Serra do Mendanha. Sua história poderia ter sido como a de tantas outras, não fosse por uma visita. Ainda bebê, ela foi tocada por uma entidade mística, um aspecto masculino da treva mítica e original que é o Povo Antigo. Em uma língua morta, o acadiano da antiga Mesopotâmia, ele entoou um encantamento ancestral, plantando em sua alma algo que a tornaria, um dia, uma representação humana daquela escuridão que envolve o mundo, que está acima e além do próprio Universo.
A Brutalidade da Nossa História
Essa semente de escuridão primordial permaneceu adormecida até que a brutalidade da nossa própria história a regou com sangue. Já adulta, envolvida contra sua vontade nos movimentos de resistência à ditadura militar brasileira, Mônica foi injustamente considerada inimiga do Estado e tragada pela máquina de moer da repressão. Torturada e deixada à beira da morte, aquilo que fora plantado em sua alma finalmente despertou. O Povo Antigo a reclamou, e a transformou. Hoje, ela é a temida e lendária agente federal que conhecemos, uma arma secreta do Estado que usa suas habilidades para caçar os monstros de terno e gravata que assombram o presente.
A resposta dos leitores a essa premissa foi algo que me tocou profundamente. Resenhas descreveram a obra como uma “mistura envolvente de história e ficção” , um “sinuoso thriller político… com vampiro” e elogiaram a forma como o livro “retratou perfeitamente o ‘cenário’ político daquela época que parece tanto com o que vivemos atualmente em nosso país”. Essas reações confirmaram o que eu acreditava: a fantasia não é uma forma de esquecer a realidade, mas uma maneira de entendê-la em um nível mais profundo.
O Legado de Mônica: Trauma, Poder e a Saga de uma Nação
Ao criar Mônica, eu queria construir mais do que uma personagem; queria forjar um arquétipo. Ela é descrita pelos leitores como “forte, determinada, dona de si e sem medo de NADA” , uma mulher “sensacional” que, apesar de tudo, “ainda parece uma menina, o que a torna fascinante e verossímil”. Essa dualidade é a essência dela. Mônica não é uma super-heroína clássica. Ela é uma anti-heroína movida pela dor. Seu poder não nasceu de um acidente de laboratório ou de uma linhagem divina, mas do trauma mais brutal. Ela é a encarnação da memória que se recusa a ser apagada, o fantasma do passado que volta para assombrar o presente e exigir justiça.
E é aqui que eu acredito que reside o legado de Mônica… um legado que o primeiro livro apenas começa a desvendar. A saga de Mônica foi projetada para ser uma exploração profunda e contínua dessa dualidade, retrocedendo às suas origens e avançando para as consequências de sua existência.
Os próximos livros da série irão explorar a jornada de transformação daquela inteligente e tímida moça do interior do Rio de Janeiro na agente sagaz, forte e sexy que ela é hoje. Veremos seus primeiros e assustadores anos nos labirintos do governo e das agências secretas, e os erros terríveis e muito humanos que ela cometeu, que a fizeram se enxergar como um monstro. Pois em sua forma mais mítica e poderosa, ela é tão letal quanto a própria natureza, uma força que só precisa de escuridão para se reconstruir, mesmo que tenha sido dilacerada.
O Equilíbrio do Poder Global
Essa capacidade quase ilimitada de poder introduz um conflito geopolítico inevitável. O que acontece quando o Brasil, uma nação do Sul Global, se torna o lar da única criatura sobrenatural do mundo, a pessoa mais poderosa da Terra? Se uma bomba a destrói, na noite seguinte ela ressurge. Se exércitos são jogados contra ela, Mônica pode chegar ao ponto de criar a própria treva, se retroalimentando de mais e mais poder. Isso não a torna apenas um ativo; a transforma em um alvo. O Brasil, por possuí-la, entra na mira das nações mais poderosas do mundo, criando uma situação limite de tensão internacional.
Contudo, o cerne da saga não é sobre poder, mas sobre humanidade. Em meio a essa guerra de sombras, Mônica redescobre sua capacidade de amar ao encontrar seu colega de polícia federal, Eduardo Araújo Weltman. Mas os jogos políticos e a corrupção mostrarão ao casal quanta dor o amor também pode trazer, pois poucas dores são piores do que ver quem se ama em risco.
A jornada de amadurecimento dessa mulher imortal é o verdadeiro fio condutor. Ela, que possui um poder capaz de mudar o mundo pela força, descobrirá que a verdadeira transformação não vem da brutalidade. Ela aprenderá, de forma dolorosa, bonita e incrível, o valor da Democracia e o verdadeiro papel do cidadão. Entenderá que, embora um pouco de força bruta possa anular injustiças imediatas, o que realmente muda o mundo são a educação, a sabedoria, a paciência e as pequenas e profundas atitudes de cada pessoa comum.
Universal e Particular
Acredito que o futuro e a força da fantasia urbana brasileira residem nessa capacidade de ser, ao mesmo tempo, universal em seus temas e particular em sua execução. No caso de Mônica, o legado que espero deixar é o de uma história que usa o fantástico para confrontar o real. Uma narrativa que mostra que as criaturas mais assustadoras não são as que bebem sangue, mas aquelas que, escondidas atrás de poder e impunidade, sangram um país inteiro. A fantasia urbana, em seu auge, não nos deixa apenas sonhar com outros mundos; ela nos força a olhar para o nosso com olhos diferentes, mais críticos e, paradoxalmente, mais cheios de assombro. E nos lembra que, em cada esquina, em cada manchete de jornal, em cada cicatriz da nossa história, existe uma história fantástica esperando para ser contada.
Por Wagner RMS.
Ouça o Podcast Deep Dive da IA Gemini:
“Mônica Deveraux, a arma secreta do Brasil entre ditadura, espionagem e Trevas Primordiais”.
Referências
- Resenhas e Análises do livro “Mônica”:
- Sobre Fantasia Urbana e o Mercado Literário Brasileiro:
- https://luisstoryteller.com.br/2024/06/26/o-que-e-fantasia-urbana/
- https://diplomatique.org.br/jovens-fantasia-literatura/
- https://escritaselvagem.com.br/dicas-de-leitura/series-fantasia-urbana-personagens-complexos/
- https://estacaoleitura.wordpress.com/tag/leonel-caldela/
- https://super.abril.com.br/coluna/turma-do-fundao/tdf-entrevista-8211-andre-vianco-autor-de-os-sete/
- https://viltoreis.com/livros-de-fantasia-epica-nacionais/