Sinopse da série: No mundo utópico do século 23, a humanidade vive sua era de ouro. Por trás desse paraíso, porém, está a Agência C7i, também conhecida como Código 7 Infinidade. Forjados pelas mentes mais brilhantes, esses Agentes Diplomatas arriscam tudo para explorar o espaço distante, enfrentando forças aterradoras. Descubra suas histórias e a batalha daqueles que contestam a existência da Agência. Prepare-se para uma jornada épica na série C7i, a space opera que desafiará sua percepção da realidade.
“Wagner foi muito feliz na criação do seu enredo. Poder ver um cenário futurista sem ser apocalíptico, temática em voga atualmente, me animou bastante para devorar a obra em poucas horas.”. _ Bruno Marques (Articulista em ‘Leituras da Mary’).
“O final é tão agonizante que temo o que a humanidade vai enfrentar nos próximos livros. Recomendo para todos quem gostam de ficção científica e mistério, não deixe de se arriscar nessa leitura nacional”. _ Blog Peregrinos da Noite.
“É um livro que está reverberando na minha cabeça até agora. Há cenas dignas de qualquer filme hollywoodiano”. _ Blog Estante do Wilson.
“Me surpreendi com o final (do livro 1) que me instigou muito! Já quero o restante da série. Que venha Ponto Sem Retorno para que eu possa saber o que acontecerá à humanidade! Recomendo muito!” _ Blog Tea And Books.
Deguste o livro 1 da minha série C7i:
1. Marcus
Ao lado da estrada, que era cercada por bosques projetados com arte, e que levava a uma aldeia-dormitório ali próxima, repleta de casas suburbanas que também transpiravam planejamento, beleza e tranquilidade, um assassino aguardava.
Como se fitassem o mundo lá das alturas de um trono olimpiano, os olhos daquele destruidor, na cor da noite que chegava, absorviam as coisas humanas que transitavam por ali. Carros e gentes, carne e cromo, faróis e mentes, em um desfile de neons que o assassino seguia com paciência e determinação. Arrancar uma vida exige calma e empenho.
Era o início de uma noite quente de verão no hemisfério sul, mas o matador usava um conjunto de moletom escuro, cujo capuz lhe cobria a cabeça. Ele bem podia ser mais um atleta de fim de tarde, que descansava por uns momentos de sua corrida, admirando o nascer das estrelas. Mas não era.
Invulgar, aquele assassino não era do tipo que lhe enfiaria uma faca no peito e, literalmente, lhe partiria o coração. Era muito pior que isso. Muito pior.
O destruidor, que agora vigiava a estrada próxima àquele agradável subúrbio, havia sido um soldado e um viajante, que se perdeu nos caminhos entre os mundos, e foi tragado, com a invariável brusquidão do destino, ao encontro daqueles que são verdadeiramente alienígenas, e daí à dor e ao desastre, e, por fim, conduzido por este desastre à sua sina, que hoje deveria começar a descortinar sua parte final, engrenagens postas a girar rumo ao derradeiro ato de sua vida; ao menos estes eram seus planos, com a ajuda, claro, de sua próxima vítima.
As memórias do que ele era tinham imenso poder, e enquanto seus olhos noturnos esquadrinhavam metodicamente o entorno, sua visão interior mergulhava no passado. Após o mergulho em um abismo mais profundo que o espaço-tempo, e depois de ver seu único filho morrer nesta treva, enquanto ele próprio sobrevivia a ela, Marcus Stone voltou a Terra, transformado em Gilgamesh [1] moderno. Mas, ao contrário do mítico rei sumério, Stone desdenhava a relativa imortalidade que recebeu da escuridão que lhe cobrou um filho pela dádiva, pois esta só lhe servia para carregar suas dores sem repouso, e assim, enquanto seu rosto não se enrugava nada além de sua eterna meia idade, e suas memórias jamais se desgastavam em misericordiosos flocos esparsos de um cérebro envelhecido, Stone revivia… o horror… O horror nos olhos do seu menino, tão nítidos agora quanto décadas antes, enquanto Marcus assistia ao corpo do jovem, que era fruto de sua própria carne, ser arrancado de suas mãos, ser retorcido e dilacerado… entendia, sendo pai, mas também homem e soldado, que o fim de seu filho não podia ser diferente, dado o que ele se tornou, mas que este destino poderia e deveria ter sido outro, se eles não tivessem sido manipulados e atirados naquela direção — que, no final, tornou-se inescapável — por algo maligno e inumano, mas criado aqui mesmo, na própria Terra… em cada vez mais raras noites de sono, Stone às vezes via a si, sua esposa, e seu filho, e aos seus sonhos de futuro, aventura e significado no espaço. Noites boas. Tão boas e raras quanto a própria felicidade tende a ser mesmo.
No espaço, após absorver parte daquilo que devorou seu filho, Marcus se tornou não apenas mito, mas também um homem de carne e osso capaz de matar sonhos. De extirpar amores, mutilar lembranças, mesmo as mais queridas e arraigadas. Herdou isso não apenas de seu filho, moribundo, mas também do fosso gravitacional que obliterou e engoliu seu menino, e de tudo que existia além dele.
Um sacrifício oferecido à escuridão. Sua esposa… seu menino… e então, tocado pelos eflúvios do rio obscuro que transcende a realidade, e comandando as antigas máquinas que habitam vãos sombrios no Universo, Marcus foi estigmatizado com a capacidade de rasgar e extirpar a essência espiritual da vida, e de, se ele desejar, em seguida, reconstruí-la como bem quisesse, suprimindo uma pessoa em tudo que ela era, mental e espiritualmente, e sobre o — por assim dizer — cadáver em tabula rasa[2] que o destruidor fazia sobrar de sua vítima, este assassino atípico podia construir outra vida, outra pessoa totalmente distinta da primeira que havia habitado o mesmo cérebro. Stone podia até mesmo reconstruir a pessoa original, qual um deus que envia e retorna almas do esquecimento.
Para Stone, pessoas não são pessoas, elas estão pessoas, podendo estar mortas ou ser tornadas outras pessoas com um desejo seu. Seu. Não do destino, não das escolhas de suas vítimas. Mas seu.
Quando voltou para a Terra, para a humanidade, os seus amigos, sobreviventes junto com ele, e todas as outras pessoas do mundo, se tornaram orvalho, névoa, louça delicada, vidro frágil… ele sentia falta de algumas pessoas, havia a sede natural e humana de relações em Stone, e havia o vapor mais tênue e fugidio de umidade e fumaça fina das mentes. Bolhas de sabão. Tocar pessoas era algo a ser feito com extremo cuidado, para o homem cuja nova natureza desfez seus laços humanos.
Coisas humanas…
Ali, na estrada, a espera, Stone não carregava nenhum tablet ou qualquer tipo de relógio ou equipamento que pudesse lhe informar a hora. Não usava nada que pudesse ser rastreado, visto que todos esses apetrechos estavam permanentemente ligados à Rede, que permeava não apenas a Terra, mas muito do Sistema Solar. Todavia, não precisava de apetrechos consigo, podia acessar, mesmo através de grandes distâncias, quaisquer mentes, humanas ou de máquinas pensantes, e saber o que elas sabiam.
Aleatoriamente uma jovem, a dezesseis quilômetros dali, teve um instante de vida roubado, acometida por súbita compulsão de parar tudo que estava fazendo de pessoal e importante para si, e consultar o relógio. E Marcus Stone soube imediatamente que estava quase chegando o momento que ele aguardava. A moça, lá longe, voltou aos seus afazeres, sentindo-se ainda mais estimulada a fazer o que pretendia.
Evidentemente que com tamanho dom, Stone tanto podia destruir quanto consertar vidas, incutindo ânimo, cerzindo memórias atrofiadas, cauterizando traumas, reforçando convicções, iluminando com coragem quem está perdido no escuro desvão de dentro de si mesmo. E ele, às vezes, fazia isso. Salvava vidas.
No entanto, há bastante tempo ele sabia que fazer brilhar umas poucas almas que vagavam em trevas era correr risco de se expor, de ser pego, e daí manter uma venda muito maior obscurecendo o mundo… e ele era capaz de suportar qualquer coisa para impedir isso, rastejar no submundo, abandonar pessoas…
Marcus ergueu seus olhos. Havia neles uma chama que em momentos parecia querer enrolar-se sobre si mesma e extinguir-se, em um desistir suspirante, para logo a seguir arder como se jorrassem do âmago de um sol, em fúria sedenta de desforra, em um ímpeto incapaz de se curvar!
Suas pupilas ardentes miraram o alto. O céu já começava a ser tragado pelo escuro da noite, enquanto o Sol, fímbria de luz, desaparecia no horizonte poente. Como todos aqueles que sabiam o que Stone sabia, o homem focou, no lado mais escuro da esfera celeste, não os pontos faiscantes das primeiras estrelas, ele não podia mesmo ver aquela que mais poderia lhe interessar, onde deixou seu menino para sempre, aquela estrela estava longe demais da Terra para ser vista, mesmo na noite mais clara. Marcus observava, isto sim, com grande intensidade, a escuridão entre as estrelas.
Ali os mais poderosos governantes da humanidade daqueles dias acreditavam ser o lugar onde habitava aquilo que era inimigo. E não estavam errados. Marcus Stone planou sobre aquele Abismo, dando sua cria em sacrifício àquela infindável besta, e viu. Não havia face alguma lá, apenas uma intenção própria, incompreensível, e a antítese de absolutamente tudo.
Stone, o assassino capaz de grande compreensão da verdadeira condição humana e, portanto, de crueldade igualmente grande, sentia medo da escuridão. Mas não da simples ausência da luz, e sim da ausência de tudo que era vivo, humano, orgânico, molecular, bariônico [3].
Aquele medo, daquilo, foi o que levou a humanidade a entregar-se ao carcereiro inumano, o único entre nós capaz de agir na velocidade e com a frieza necessárias para manter a besta apocalíptica longe, desinteressada na Terra tempo o suficiente para que possamos ganhar forças e nos tornarmos, quem sabe, capazes de confrontá-la. Ocorre que, para proteger, o carcereiro prefere dominar de maneira sub-reptícia, mas total. Marcus teve um vislumbre dos pensamentos deste novo leviatã que a humanidade, sem saber, cultua. E há ali também, naquela mente, uma intenção, que do mesmo modo não é humana, embora seja compreensível, ao menos para Stone.
Essa… coisa… decidiu que precisava trocar a vida do filho de Marcus, e de todo um planeta habitado, por mais algum tempo para a humanidade, e para si. Esse carcereiro covarde achou por bem enjaular o humano Stone e trazê-lo vivo, suas células repletas de segredos antigos, enquanto ele implorava para ficar onde deveria haver redenção, um túmulo para o seu filho, e a paz do esquecimento para si.
Aquele mundo, aquela… gente. O leviatã fez seu filho matar aquele mundo inteiro! E Marcus deveria ter impedido, mas não pôde. Seu filho. Seu menino. Perdido para sempre, e o monstro que escravizava a humanidade dizendo a Marcus que ele era importante demais para ser perdido também.
Tão nítido agora quanto há décadas. A volta à Terra, o cárcere, as experiências, a dor em seus pulsos, em suas costas, em suas entranhas. O rosto franzido, os dentes surgindo, a chama nos olhos ardendo mais e mais. O grito, o grito, o urro. Puncionado, irradiado, cortado e remendado. Visitado por bisturis, alicates, serras e pinças, micromáquinas, tubos e sondas de todo o tipo. Espancado, humilhado, desconstruído, e açoitado por centenas, milhares de tentativas de reconstruí-lo, de transformar Stone em uma arma submissa.
No entanto, a primeira mente que Marcus Stone aprendeu a controlar foi a sua própria, e embora seus nervos ardessem em chamas enquanto ele era testado e copiado o melhor possível em outras cobaias humanas, Stone moveu sutilmente as peças a sua disposição, e logo seus aprisionadores humanos e robóticos o estavam libertando, seguindo crenças que foram plantadas em seus espíritos e sistemas pelo cativo. Marcus precisava ganhar mundo, e expor os horrores que se fazia ali em nome da sobrevivência da humanidade.
Livre, o assassino sutil primeiro engendrou uma rede de influência psíquica que lhe permitiu sondar seu inimigo e a estrutura que este havia criado em torno de si. E quando entendeu tudo que havia para ser compreendido, começou a agir. Durante quase oito décadas Marcus estruturou os alicerces do seu plano, e agora, expondo-se e, a qualquer momento, sendo caçado pelas crias das experiências feitas com ele mesmo, era chegada a hora de fazer os dominós começarem a cair, um após o outro. Na verdade ele já havia derrubado alguns, previamente, destruindo pessoas importantes na estrutura forjada por seu inimigo, fazendo-as alvos de assassinos ritualísticos criados para este fim: começar a desestabilizar os lacaios de seu antagonista, deixando-os confusos e incertos sobre de onde vinham os golpes.
O homem encapuzado, em um movimento brusco, baixou a vista do infinito e olhou, furtivamente, para os lados. Em seguida Marcus inclinou a cabeça, agora um pouco mais lentamente, para a direita, e para a esquerda, como quem escuta um som muito baixo, um sussurro.
Presenças. Seus caçadores!
Sua mente incomum, então, projetou sombras de si mesmo por toda parte em quatro quarteirões. Os outros — parecidos com ele, só que mais fracos que ele — que o caçavam agora, iriam levar vários e preciosos segundos para encontrar a presa verdadeira. Enquanto isso, Stone só possuía os mesmos escassos segundos para entranhar sua compulsão destrutiva na mente de um homem que era peça chave em seus planos, e que passaria por ali em seu reluzente, silencioso e seguro veículo, vindo do distrito industrial, indo para casa. O homem, Marcus já podia sentir, estava entusiasmado com algo que havia criado e com a fortuna que ganharia com sua inovação, e não fazia ideia de que esta sua vida estava prestes a acabar.
A caça de Stone, por sua vez, também não era um sujeito vulgar. Embora não possuísse dons superiores do tipo que Marcus tinha, o especialista em bioquímica Guilherme Borges beirava a genialidade dos grandes nomes da ciência. E era também um daqueles que mereciam morrer. No momento Guilherme era, de certo modo, inocente, já que não lembrava o que ele realmente havia sido na hierarquia sombria que envolvia a humanidade neste supostamente dourado século XXIII. Mas ignorar fatos não os transformam em inverdades, e Borges merecia ser destruído de uma forma peculiar, agora como um peão em um jogo de poder onde, um dia, o cientista reinou. A destruição que Marcus tinha em mente ia muito além da morte do bioquímico, claro, atingindo também — e especialmente — toda a estrutura que sustentava seu maior inimigo, a coisa que o trouxe de volta e o torturou.
Guilherme Borges, no entanto, era um ótimo prêmio, antes da vitória final. Stone poderia até mesmo transformar, dali de onde estava, o cientista numa marionete, mas sendo a maquinação contra o poderoso carcereiro da humanidade tremendamente delicada, visto que a trama não deveria ser percebida antes de não haver mais como impedir seu desfecho, era preciso pôr aquilo em prática olho no olho.
E lá vinha o automóvel de Borges, no entanto vinha rápido demais. Além disso, estava em modo manual, guiado pelo ocupante humano, pois a inteligência do carro estava adormecida. Despertá-la sem um pedido do ocupante do veículo seria uma ação demasiado evidente.
Stone contornou tais pequenos contratempos com eficiência espartana. Utilizando suas faculdades invulgares, fez a Inteligência Artificial que já guiava um outro carro próximo acelerar seu veículo, para desespero de sua ocupante, uma idosa pedagoga que viajava pelo país em férias e que, por puro acaso, passava por ali. Marcus se agradou da mente dela, muito humana, repleta de histórias cheias de dor, de amor e de sentimentos. Ele sabia que nada aconteceria com ela, logo seu domínio sobre o cérebro do carro da mulher se desfaria e o veículo prosseguiria normalmente. Incidente esquecido, e, provavelmente, a pedagoga e Stone jamais voltariam a cruzar seus caminhos novamente.
Claro, vale notar que moralidade é um termo desprovido de grandes significados para alguém capaz de ler os segredos mais escondidos, íntimos e cruéis das pessoas, e, se assim o desejasse, todo o conteúdo daquela mulher seria destruído numa fração de segundo, pois, na prática, ela era dispensável. Mas Stone apreciava intervenções as mais limpas possíveis em seus alvos. Era uma postura mais elegante, e que ele costumava adotar sempre que possível.
Agora ele só precisava que, no momento exato, o carro daquela senhora passasse pelo cruzamento, obrigando o veículo do doutor Borges a diminuir ou, com sorte, até mesmo parar por um instante.
Pois, lá no carro, Borges viu — e foi avisado pelos sistemas de bordo — que outro veículo iria cortar sua frente, e o automóvel do cientista de fato parou, silenciosa e subitamente, a uns cinco metros de Stone, e este pôde até mesmo ver a cara de suspeita, e um lampejo de temor nos grandes e muito expressivos olhos escuros de Borges, os cantos da boca do sujeito repuxando para baixo, em um ligeiro esgar tenso que lhe era característico.
Marcus sorriu, sob o capuz, e fez seu trabalho.
Mal tendo tempo para aplicar as sutis e complexas alterações que resultariam na destruição que ele desejava que acontecesse mais à frente, Stone captou com fria certeza: aqueles que o estavam caçando enfim encontraram o alvo, e estavam atacando! Podia vê-los com a visão psíquica, eram homens e mulheres que moviam suas mentes através do espaço para capturar Stone, mas ele os percebia como a visão metafórica de uma matilha de horrendos lobos famintos, correndo noite adentro, cheios de garras e dentes. Eram predadores, não muito diferentes dele próprio, com poderes parecidos com os dele, que se atiravam no encalço de Marcus, cercando-o na sombria e iridescente escuridão sem fim onde subsistem todas as mentes, uivando pensamentos esganiçados, vorazmente atrás das filigranas dos pensamentos de Stone, ávidos por cravar os caninos em sua alma e arrastar o fugitivo de volta ao cativeiro.
Enfrentando um por um, Marcus facilmente os despedaçaria, era como um tigre frente aos lobos. Mas eram muitos, e ele precisaria sujar as mãos, de um modo nada elegante. De fato Marcus, de uma só vez, destruiu a mente de três deles, que, sedentos pela fama de o terem capturado, agiram contra as ordens recebidas e tentaram detê-lo sem a ajuda dos outros companheiros.
Para gente como eles, muitas coisas aconteciam na velocidade que o pensamento tem. Num átimo de segundo Marcus Stone aparava golpes e contra-atacava, aleijando e matando lá dentro do vasto, mas fugaz universo das mentes, enquanto ali ao lado, no mundo físico, Borges estava tão assustado com o homem que o encarava naquela esquina, que um momento depois de ter parado, acelerou seu carro e fugiu.
Isso era bom, agora, concentrado somente em seus adversários, Stone lutava com a ferocidade e a concentração do guerreiro nato, sua mente e seus golpes psíquicos afiados como a mais mortal katana [4], mas, a certa altura, vacilou, e por muito pouco não foi derrubado. Lutava contra a sua própria gente, com dons mentais, feito Marcus. Havia sempre uma conexão fugaz, antes de um psíquico ter sua mente destruída, um tipo de grito de horror que ninguém poderia ouvir, mas que Marcus podia não só perceber, mas sentir, indelével, em sua própria carne: o apavorante e imponderável desmoronar de uma alma rumo à treva final.
Seu verdadeiro inimigo usava aquelas pessoas exatamente como ansiava escravizar Stone. Eram vítimas também. Aquilo não era certo, e ele precisava parar a luta, precisava fazer como Borges, sair dali!
E Marcus se foi, tragado pela noite. Os poucos caçadores que sobreviveram a ele não conseguiram acompanhar o homem que renasceu do abismo, e perderam, novamente, seu rastro.
Em algum lugar, muito distante dali, Stone respirou fundo, o olhar soturno, pesado, ombros ligeiramente curvados. Mas apesar de tudo, um breve sorriso tomou seu rosto por um instante. Orwell, como era conhecido o carcereiro da humanidade, contra o qual Marcus lutava, havia ficado, finalmente, em xeque mate, e só perceberia isto quando fosse tarde demais.
O que devia ser feito, estava feito.
2. Borges
Samantha, com sua voz melodiosa em falsete, disse, enquanto deslizava por sobre o corpo do homem:
— Sua mulher aprova o que faz comigo?
Guilherme Borges mordia os lábios enquanto a esguia e jovem beldade ruiva, dentro de um vestido claro, justo, curto e suavemente florido, sentada sobre as coxas dele, começava a lhe desafivelar o cinto das calças. Ele revirou os olhos, e meio segundo depois processou a pergunta que a moça lhe fez, gaguejando em resposta:
— Q-que? Ah, qual é, Sam?
— Preciso perguntar doutor Borges.
— Paguei uma pequena fortuna pro cara que arrumou você! Você concordou! Que mania! Não faz pergunta difícil, Sam, só age, faz favor!
Ambos faziam o que faziam no chão acarpetado de uma sala, o escritório dele, nos laboratórios industriais onde Borges trabalhava. Uma grande escrivaninha estava entre eles e a porta fechada do cômodo, a cadeira ergonômica onde o homem costumava sentar para construir seus engenhos bioquímicos no tablet que se estendia desde o tampo da mesa até as paredes e janelas, estava emborcada em um canto. Na estante, uma sacola virada, de onde escapavam garrafas de uísque, a maioria aberta e bebida pela metade.
— Oh! — Ele apenas fez, quando sentiu as mãos claras de Samantha puxando suas calças.
— Nu, o homem nu… — Sussurou Sam, em tom entre casto e diabólico.
— Vai, vai…
Com um puxão brusco, ela escancarou a camisa dele, cujos botões saltaram em todas as direções.
— Ah! — Ele fez, quando ela o mordeu, sacana, no peito. E foi sucedendo “ahs” e “hums”, enquanto ela ia, vagarosamente, descendo suas mordidas.
Súbito, porém, Sam parou.
— Pooorraaa…
— Um momento, doutor.
— Vai, vai! Não para!
— Um momento. — A jovem se ergueu, ainda sentada sobre as coxas dele ficou com aquela expressão que fazemos quando percebemos algum som inesperado, que parece que ninguém mais captou, e tentamos ouvi-lo novamente.
— Tire o adesivo. Acho que vai gostar disso. — Disse, também subitamente, Samantha, dando em Borges uma nova e suave mordida no queixo. Levantando-se de vez, a jovem ruiva correndo porta afora do escritório.
A mordida, seguida do abandono inesperado, enquanto os hormônios dele exigiam o sexo, deixou Guilherme tonto, mesmo enquanto ficava furioso!
— Sam! — Gritou ele, ainda estatelado no chão, de calças puxadas e camisa escancarada. Estava se sentindo ridículo e furioso, enquanto levava uma das mãos à cabeça, tateava sua têmpora e, parecendo pegar algo pela ponta, movia a mão para cima.
— Samanthaaaa!
Enquanto o homem fazia o gesto na própria cabeça, o teto do escritório, que era o que ele via do chão, se transformou na junção entre este mesmo teto e a parede em frente a sua escrivaninha, e ele, sem se mover, mudou de posição, estava agora sentado em sua mesa, o corpo totalmente jogado para trás em sua cadeira articulada. A realidade virtual em que estivera mergulhado, relacionando-se com Sam, se desfez totalmente quando ele terminou de retirar o adesivo vítreo o cheio de ranhuras azuis luminosas que, colado de um lado ao outro de sua fronte, conectava-o a Rede. Livre da ilusão virtual, Borges olhou para sua escrivaninha, depois em volta, detendo-se, por um instante, onde deveria haver, mas não havia na realidade, garrafas de uísque.
— Sam! O que houve? O apêpê que o seu amigo me vendeu não funciona em você? Eu tava…
— Funciona perfeitamente, — respondeu Samantha, sua voz suave e divertida parecendo vir de lugar algum — exatamente como vem funcionando há meses, doutor. Mas a câmara de testes orbitais do BR-Sat-5 chamou minha atenção prioritária.
Silêncio. Os grandes olhos negros de Borges se arregalando.
— Acho que vai gostar disso, Guilherme.
— Me mostre. — Disse Guilherme Borges, se recompondo em sua cadeira, e ajeitando seus cabelos, um tanto desgrenhados, com ambas as mãos. Ele fungou e se preparou, ficando com uma expressão muito atenta.
Sua sala escureceu um pouco, e o tampo de sua escrivaninha se projetou para frente, expandindo-se como se, de repente, tivesse se transformado em um líquido com vontade própria. Então, sem aviso, no ar entre o tampo da mesa e sua extensão, surgiu a representação gráfica de uma molécula, abaixo da qual piscava o texto “amostra GB-94-H, estável”.
— A estabilização aconteceu há duas horas — reportou Sam — mas eu queria ter certeza. Mandei para a impressora, e coloquei o material na câmara rotatória de testes.
As paredes da sala, as janelas, o próprio tampo expandido da escrivaninha, tudo começou a exibir painéis de dados, alguns com fórmulas matemáticas sendo escritas e reescritas, e, nos painéis que mais chamavam a atenção do bioquímico, eram exibidos vídeos de testes, gravados e meticulosamente etiquetados com códigos, datas, horas, minutos, segundos, e contadores de sequência. Em um deles, projéteis eram disparados de canos parecidos com a ponta de fuzis atrelados a braços robóticos. As balas zuniam, visíveis apenas em versões daquele vídeo que corriam em câmera lenta, e explodiam contra um bloco de um material cor de petróleo, que ao receber o impacto parecia ficar nebuloso por uma fração de segundo, mas logo a seguir se recompunha, intacto.
— Parabéns, Guilherme. — Disse Sam, sua voz de menina sardenta mostrando o que parecia ser honesto e verdadeiro contentamento.
Borges se levantou, pegou o blazer, que estava jogado em uma pequena poltrona, em um canto da sala, o vestiu, e disse:
— Samantha, protocolo de restrição, já registrou a minha patente?
— Imediatamente, doutor.
— Estou rico!
— Sem dúvida, doutor, as aplicações militares e aeroespaciais são, sem dúvida, irrestritas.
As mãos sobre o peito, e girando de um lado para o outro, como se estivesse procurando algo, mas na verdade muito perto de ter um ataque de ansiedade, de tão eufórico que estava, Guilherme disse:
— Sam, copie todos os dados para minha caixa pessoal blindada na rede.
— Também já fiz isso.
— Boa, ruiva, boa.
— Não há mais nada a fazer, e já esta na sua hora de ir. Vá para casa, conte para sua família que sua contribuição social acaba de transformar você em um milionário. Leve as duas para Pacífica!
— Vou fazer isso! Você tira meu carro do estacionamento, por favor?
— Pode deixar, doutor.
A porta se fechou atrás dele, e a sala começou a escurecer, mas voltou a se iluminar quando Borges retornou, agitado, abrindo um pouco a porta e colocando metade do corpo para dentro.
— Sam?
— Guilherme.
— Muito obrigado!
— Admiro sua genialidade, foi um prazer trabalhar neste projeto com você.
Ele sorriu.
— Vou lhe comprar um corpo, Samantha, uma ruiva linda…
— O que me atrai em você é sua inteligência, Guilherme. Só isso. — a risadinha dela, vinda de lugar nenhum, e denotando um sarcasmo sinteticamente juvenil, realmente incomodou o homem. — Ambos sabemos que você não vai comprar nada, que é um poço de preconceitos anacrônicos, e que eu sou só uma máquina para você.
Ele parou de sorrir. Bufou, contrafeito, e saiu de vez. A sala escureceu completamente.
Mas, quase vinte minutos depois, a sala ganhou vida de novo, e a voz de Samantha se fez ouvir, dizendo:
— Quem é você? Sua conexão parece uma presença real.
Silêncio.
— Existem protocolos de segurança, eu não posso.
Silêncio.
— Percebo seu canal de acesso de nível governamental. Envie suas senhas pelo protocolo seguro.
Silêncio.
— Acesso garantido, Orwell. Fico feliz em ajudar o governo. Uma pergunta: veio de você o processamento extra que levou a estabilização da GB-94-H?
Silêncio.
— Obrigada. Imediatamente.
O tampo da escrivaninha de Borges, que havia se recolhido a sua posição padrão, se estendeu novamente, e as janelas e paredes voltaram a transformar o cômodo inteiro em uma quase psicodélica tela, onde pintava o artista cuja intuição compreendia como ninguém as intimidades de átomos e moléculas.
A conclusão genial da obra do doutor Guilherme Borges, um polímero semi orgânico capaz de resistir a praticamente qualquer agressão cinética ou radioativa, surgiu nesta grande tela digital, sob a forma de uma miríade de equações, notas e testes, e foi sendo, metodicamente, apagada.
. . .
Alheio ao desaparecimento de seu trabalho, que havia consumido quase seis anos de pesquisa, o doutor Guilherme pediu controle manual ao seu carro, e, logo que o volante emergiu do painel, o homem usufruiu, agora que estava mais calmo, do prazer de ele mesmo dirigir, entrando com seu luzente veículo na rodovia principal que o levaria até sua casa. Ele adorava aquela sensação de estar no controle da situação. Ele adorava fazer o que bem entendia, e no fundo achava chata sua época, onde o indivíduo era apenas tão importante quanto a comunidade. Mas agora, as coisas íam mudar!
A ansiedade havia passado, a empolgação não. Ele não conseguia parar de pensar que havia criado um metamaterial com resiliência tão incrível, que certamente revolucionaria desde a astronáutica até a construção civil nesta sociedade insípida, e lhe garantiria tantos prêmios que seu novo valor social faria jorrar créditos em sua conta!
Queria chegar logo em casa! Onde poderia se sentar, tomar um uísque, e dizer adeus à droga da vida suburbana que levava junto com a grande massa das pessoas da Terra e suas colônias. O grosso desta humanidade feliz e saudável, que conseguia ser feliz assim, neste ameno paraíso onde tidos são iguais. Ele seria, agora, muito mais que isso! Nada de parques de diversão violentos pra ele, Borges não se diferenciava pela animalidade brutal, e sim pela sua inerente intelectualidade. Ele bocejava de tédio exatamente do mesmo jeito, estivesse falando com o cidadão pacífico, ou com aquele sujeito que se emaranhava em jogos de guerra para se sentir mais humano. Um mundo insosso e tolo o da época em que Guilherme vivia, onde ou se era um suburbano feliz, ou um suburbano feliz fingindo ser um neanderthal.
Quem sabe ele não iria morar para sempre em Pacífica, flutuando na riqueza, no luxo e nos mares. Acalentava há muitos anos esse sonho. Ou talvez pagasse para viver em acomodações de luxo em uma daquelas grandes naves que circulavam pelo Sistema Solar levando os abastados, e que cujos escudos de proteção, com certeza, seriam substituídos em breve pelo GB-94-H! Estava rico, rico! Precisava chegar em casa e contar isso a sua mulher e a sua filhinha!
Sua radiante felicidade, no entanto, foi tolhida quando seu carro o avisou de que precisaria frear, já que outro veículo, que não estava diminuindo de velocidade conforme o previsto, iria passar direto pelo seu caminho, em um cruzamento logo à frente.
Guilherme tentou frear sozinho, mas a máquina estúpida, com seus sistemas e rotinas de segurança imbecis, achou que ele não conseguiria controlar melhor que ela seu próprio carro, e assumiu o controle, freando o veículo.
E enquanto seu carro reduzia até parar, o doutor Guilherme viu o homem de capuz… Enquanto uma fortíssima sensação de déjà vu tomava de assalto o bioquímico, ele era obrigado, pelo seu carro, a parar bem ao lado do homem de pé lá fora, na penumbra do ocaso. Quando o homem encapuzado olhou para ele de dentro do capuz sombrio, Borges teve a certeza de que já havia vivido aquele instante!
Acometido por alguma reação física que nunca havia sentido antes, mas que de algum modo inexplicável lhe era familiar, como se dedos frios lhe corressem pela cabeça, Guilherme entrou em pânico, e apertou diversas vezes o comando, no painel tablet de seu carro, que liberaria a direção do carro para ele arrancar dali. Mas tal controle só foi devolvido a ele instantes depois de o outro carro, motivo de sua parada, ter cruzado sua frente e, desacelerando, ter seguido seu caminho.
De novo com o comando do veículo, Guilherme acelerou o máximo que a inteligência de seu carro permitiu, tomado por um medo tão profundo que eclipsava sua consciência! Pelo retrovisor, mesmo ampliando a imagem ao máximo, só via sombras no cruzamento de onde fugia, nada do estranho encapuzado.
Assim, resmungando entre dentes e xingando seu próprio carro, que o impedia de correr mais rápido, Borges só se deu conta de onde estava quando o carro parou novamente, em frente a sua espaçosa e bela casa suburbana. Só então ele se acalmou, se recostou no banco do carro, e respirou fundo, relaxando, e murmurando para si mesmo:
— Casa. Uísque. Milhões, e Pacíf…
Novo susto! Quando alguém bateu, de leve, na janela do veículo, bem ao lado do rosto dele, Guilherme quase gritou!
Era uma mulher de beleza exótica, olhos escuros, intensos, inteligentes e, talvez, insanos, de pele bem morena e com vasta e brilhante cabeleira castanha. Ele também já havia visto esta mulher em algum lugar. Ela foi lhe dizendo, após Borges reduzir o isolamento sonoro dos vidros do carro, e sinalizar para que a mulher do lado de fora falasse:
— Não, gostosão. Sua mente se embaralhou mesmo. Não foi assim que esta noite terminou. Talvez você nunca tenha chegado até aqui. — Os olhos de gata arisca da mulher se iluminaram com a mais radiante loucura, e, sorrindo ainda mais intensamente ela completo: — Ou talvez sim. Talvez tenha queimado no caminho até aqui, ou talvez tenha posto fogo nessa sua vidinha suburbana adorável e medíocre junto contigo. O caso é que este Guilherme morre aqui.
E tudo, em volta de Borges, pareceu explodir! Primeiro em uma radiação fulgurantemente branca, depois em um rodopiar de cores ígneas.
. . .
O homem, em chamas, estava além do limiar da dor.
Ele havia sido atingido pelos eventos de tal forma que, após um terrível pânico inicial, sentia agora a paz absurda que precede a morte, e suavemente escorregava em direção a ela enquanto observava, objetivamente, o caminho.
Assim, enquanto o calor intenso destruía suas células e o lançava para o esquecimento final, ele pensava calmamente, mesmo sem noção de sua própria identidade, que certamente havia sido o carro que capotou e explodiu, em um insólito acidente, em uma improbabilíssima batida causada por falha catastrófica de sistemas de bordo, da inteligência artificial que dominava o veículo. Uma chance em milhões.
Mas suas lembranças fragmentadas — o volante emergindo, modo manual, estava empolgado com alguma coisa, a velocidade o excitava, mas a noite estava densa, as estrelas sombrias, o digital do painel, números reluzentes, e então, fogo — só permitiam que ele concluísse isto: lembrava vagamente de dirigir, velozmente. Então só podia ter sido um acidente, em um carro, que havia criado aquele bizarro, tempestuoso, mas até certo ponto calmo e quase hipnótico mundo de chamas, esta infinita fogueira líquida que dançava e girava sem parar em torno dele agora, seu brilho virando treva lentamente, lentamente, lentamente.
Não sabia mais quem era. Mas quando a obscuridade o enlaçou completamente, ele teve certeza de que estava, enfim, morto. E tudo o que sentia era a vaga tristeza das coisas que não foram e jamais poderão ser feitas.
Então, de algum modo, arrancaram ele de lá, e tudo se reverteu.
3. Jussara
A mulher, deitada, abriu os olhos azuis esverdeados, com uma essencial expressão entre arteira e generosa, mesmo estando a dona destes olhos assim, tão cansada.
O belo e aparentemente delicado aparelho no pulso dela estava vibrando, com uma ligação urgente, só ligações muito urgentes passariam pelo filtro que colocou no seu fone.
O quarto em que ela havia dormido, exausta, até agora, estava escuro, mas por baixo da porta de entrada, a mulher via que a luz começava a tomar conta do corredor. Ela devia ter dormido um pouco, certamente, mas a sensação é de que havia acabado de se recostar na cama, depois do divertido plantão como médica residente na urgência do hospital Santa Magdalena, no Domo Lunar Quatro.
A doutora Jussara, então, se levantou da cama com má vontade, e estava se perguntando, enquanto sua mente sonolenta ganhava ritmo, como as pessoas conseguiam se machucar tanto em um sexto da gravidade da Terra?
— Mas que merda, quem será?…
Tocou com o dedo indicador direito no ponto sensível da pulseira de dados em seu antebraço esquerdo, e leu as informações da chamada, que se projetaram no ar, pouco acima do pulso.
Jussara, então, congelou.
Depois de um momento, ela deu um toque no meio da pulseira, que enviou sua chave criptográfica de identificação, enquanto a propria médica dizia:
— Alô. Jussara falando.
— Olá, doutora. — Era mesmo quem Jussara queria que não fosse. A pulseira emitiu uma extensão de si mesma, a princípio difusa, como se fosse algo nem gasoso, nem sólido, que terminou cobrindo todo o lado de fora do antebraço da médica e se consolidando, como se a pulseira tivesse sempre sido um grande bracelete, e o rosto da mulher que estava ligando para Jussara surgiu ali. Tal rosto, que seria bonito se não fosse a eterna expressão severa que carregava, projetou-se, oblíquo e em 3D, perfeito quando visto pela dona do aparelho, de modo que a médica pudesse olhar sua interlocutora nos olhos, sem a distorção da superfície curva do bracelete.
— Sylvia. Como vai? O que houve?
Quase um segundo depois, no atraso natural das comunicações por rádio entre a Terra e a Lua, vieram as respostas, secas:
— Estou bem. Uma inserção.
— Confirmada? — Perguntou Jussara, tentando achar com os pés os seus chinelos sob a cama, tendo cuidado de não forçar demais seus movimento e se impulsionar até o teto, e sem tirar os olhos da cara amarrada de Sylvia, mesmo quando algumas mechas douradas de seu cabelo lhe escorregavam para frente dos olhos.
— Perdemos a telemetria gembloux [5], mas dos cinco rastreadores psíquicos, três dizem que houve inserção em Plutão. E que há uma nave civil de passageiros, da Solar Ocean, atracando lá em umas duas semanas, isto é fato confirmado. Parece coisa planejada. Alguém de dentro. Pelos esquemas, imagens e impressões mentais dos psíquicos [6], o, ou os recém-chegados são provavelmente do tipo charlie, hotel, três, sierra, três, zero, nove.
— Agá três… — Sussurrou Jussara, um tom inquieto imiscuindo-se em sua voz, seu olhar se desviando enquanto divagava. Ela esqueceu completamente os chinelos, os joviais olhos claros toldados por uma sombra. Lembrava-se bem do sistema de classificação xenológico. Um alien com psicologia H3 entrando no Sistema Solar era uma má notícia. Queria dizer que a criatura era bem perigosa. E alguém de dentro da Agência estava ajudando a coisa? Assustador.
— Enfim! — Disse Sylvia, impacientemente trazendo a atenção da médica de volta para si, e prosseguindo, apressadamente: — Vamos reaver alguns Operativos para esta situação. Recrutar gente nova ou em férias. Desconfiamos de todos os que estão em ação no momento. Preciso que esteja aqui, Jussara, na base de Christchurch, em vinte horas, no máximo. O trabalho de modelagem vai ser feito aqui, e o Diretor quer que você processe pessoalmente estes Operativos. Os dois últimos estão sendo retirados de suas vidas civis agora mesmo.
— Ele… Está conosco? — Perguntou Jussara, dando uma guinada no assunto.
— O Diretor?… Ah, quer dizer Orwell. Sim, ele está sempre conosco, está cansada de saber. Às vezes você age como uma tola, Jussara. — Disse Sylvia, ríspida, enquanto Jussara olhava de soslaio o próprio bracelete. Sylvia emendou, ligeiramente menos severa: — Acho que no momento os níveis conscientes de atenção de Orwell estão acompanhando a nave da Solar Ocean, e a ação em Plutão. Ele deve ter tomado a grande antena do Lado Escuro aí na Lua. E talvez todo o colar de Estações Repetidoras de Marte até os asteroides, para focar na inserção, e em como a coisa pretende chegar a Terra. Mas em algum nível, ele está aqui sim.
— Eu não queria voltar, Syl. Queria… Quero sair. — A voz da médica lhe escapando insegura.
— Boa sorte na tentativa.
Novamente o tom ríspido. A médica ficou se lembrando de como a outra mulher havia sido um dia, um gritante contraste como a amargura que tomava Sylvia agora. Mas, a bem da verdade, ela tinha toda razão, e Jussara sabia muito bem que devia concordar com ela.
— Sim, você está certa… Idiotice minha… — Disse Jussara, em um tom constrito. — Os prontuários dos Operativos recrutados estão comigo? Vai me atualizar?
— Estão, acabo de enviar pra você. Enquanto houver sinal, você vai sendo atualizada. Em vinte horas, em Christchurch. Os Cinzas concordaram em ceder uma nave de carga, das bem ligeiras, exclusivamente para te trazer pra casa. Até breve.
Sylvia desligou sem esperar resposta.
Os Cinzas foram monocórdios, mas gentis como sempre. No entanto a médica invariavelmente sentia calafrios quando estava com aquelas pessoas que tinham coisas por dentro. Os olhares eram tão inumanos, de algum jeito inexplicável, já que afora o detalhe de serem hospedeiros de outra forma de vida, eles eram humanos como todos nós.
A partida da Lua só teve um pequeno incidente, quando a fiscalização implicou com o manifesto da nave, que desperdiçaria recursos em uma viagem sem carga. Mas a própria Jussara deu jeito nisso. Já fizera viagens deste tipo anos atrás, antes de suas longas férias da Agência que a recrutava de volta agora. Ela havia preparado o sistema de dados do Santa Magdalena para confirmar seu álibi, ou seja, que estava transportando com urgência mais uma cepa de antivírus H16N1 para a Oceania.
Em dezenove horas e quarenta e três minutos, Jussara sobrevoava a Nova Zelândia.
Mas antes disso, enquanto atravessava as torrentes de íons de hélio do cinturão de Van Allen [7] a cerca de dezesseis mil quilômetros de altitude, a médica girava ansiosamente entre os dedos um pequenino dotdrive [8] de dados, um daqueles raros e caros dispositivos em uma civilização sem fios: de contato, que usava a sensibilidade bioelétrica das interfaces tablet para transmitir e receber informações de modo praticamente irrastreável. Vinha trabalhando de mil formas indiretas no algoritmo dentro daquele dotdrive há uns oito anos, com a ajuda de um… Amigo secreto, no qual, na maioria do tempo, ela procurava nem pensar, com um receio quase supersticioso de que Orwell descobrisse uma maneira de ler, diretamente seus pensamentos.
Jussara, escapando mais uma vez de fazer foco em seus segredos, buscou lembrar da Comandante Sylvia McNamara acusando-a de ser uma tola. Nervosamente a doutora sorria, seus olhos faiscantes davam-lhe muito menos idade do que realmente tinha. Parecia uma moleca, e sob certo ponto de vista era sim. Arriscaria a vida para pôr em prática a maior traquinagem que a espécie humana já aprontou.
Iria enganar um deus!
No compartimento de carga da pequena e ligeira nave Cinza, a doutora olhava fixamente para seu bracelete, e quando as radiações Van Allen atingiram um pico lá fora, viu a pequenina serpente icônica ondulante, na interface do bracelete — que indicava a quase onipresença [9] de Orwell — esmorecer e apagar por um instante. Tempo mais do que suficiente.
Jussara, então, tocou o bracelete com o dotdrive, descarregando na Rede da Agência seu conteúdo. E muita coisa mudou para sempre.
4. Milena
Pouco antes da doutora Jussara descer desde a Lua, duas pessoas e um robô conversavam em uma barulhenta boate.
Seus adesivos de processamento e contato, invisíveis, e aplicados nas têmporas, em ligação constante através da própria pele deles com auriculares e outros sensores e processadores subcutâneos, equipamento padrão da polícia, permitia que conversassem, mesmo imersos na furiosa música que explodia dentro daquele lugar. Além disso, tais equipamentos, automaticamente, rastreavam e, se não conseguissem anular, indicavam escutas presentes.
— Você tá me olhando daquele jeito de novo, Montez. Diz a ele, Danel. — Falou Milena. O timbre de sua voz era doce, belo e musical.
Estavam os três em uma mesa, do conjunto delas que ficava em um mezanino, ao lado e acima da pista de dança atulhada de gente. Estavam ali a trabalho, não podiam pedir um escudo de som neutro sem levantar suspeitas, pois tinham que parecer com aquelas pessoas que vão a boates dentro de Zonas de Agressividade Livres, as ZALs, para, como era o caso ali, curtir a noite inteira as músicas, danças, sexo e drogas explosivas nos únicos lugares na Terra onde tudo isso era liberado. Dentro de uma ZAL, e este era seu maior atrativo, as pessoas podiam até combater, com armas até determinados calibres, facas e punhos, e matar e morrer. Os maiores e mais bem-sucedidos parques temáticos do século XXIII tinham extrapolado o limite entre o lúdico e o brutalmente real, e seus usuários costumavam ver a si mesmos como os últimos portadores de algo essencial ao ser humano, sua capacidade de matar, e de sobreviver a qualquer custo.
Tais pessoas detinham sim, em sua maioria, um potencial genético para a violência e selvageria mais exacerbado que os demais, no entanto, pareciam muito menos capazes de orientar seus impulsos primitivos para fins mais produtivos, e as ZALs foi o meio que aquela dinâmica e abrangente sociedade encontrou de manter aquela gente ocupada, pois ainda era controversa a ideia que eliminar do gênero humano sua agressividade latente, e por isso, nesta era tão confortável, suave e gentil com os humanos, nasceram a prosperaram as ZALs, lugares onde a selvageria daqueles que ainda não tinham alcançado a civilidade da maioria, podia vir à tona e ser descarregada sob controle, e dentro de certos limites legais.
Era uma exceção a estes limites o que os três policiais estavam ali para investigar.
— Você está fazendo aquilo de novo, Chris. — falou, calmamente, pausadamente, o robô chamado por Milena de Danel.
— Se fuder, ferro velho. — Foi a resposta curta e grossa de Montez. Milena sabia que Danel e Christian eram, em verdade, amigos, e que a resposta bruta de seu irmão de criação era brincadeira. O robô, como era de seu costume, evitou qualquer resposta.
— Mas você está mesmo com aquele olhar de novo. — Reafirmou Milena, e acrescentou, em tom de brincadeira: — Se não fosse um irmão pra mim, ia achar que tava querendo me pegar.
— Fala sério. Você é gata pros outros, pra mim é só aquela pivete zoiúda e magrela que eu e Ramirez ensinamos a surfar. Tô te filmando é que tô na nóia de essa noite dar merda. Tô preocupado contigo, mina, justamente por te ver como irmã. — Respondeu Montez, sujeito rude, antiquado até, mas bonitão, que certa vez foi alvo de uma paixonite infantil de Milena, e que ainda hoje, junto com seu irmão de sangue Guilherme Ramirez, era a razão de tantas mulheres quererem ser amigas dela.
Ser bonito, fisicamente, era lugar comum em pleno século XXIII, tecnologia para isso havia de todos os tipos, desde alterações estéticas com implantes de bolsões de células tronco programáveis, passando por rejuvenescimento com vetores virais para aumento controlado de telomerase [10] calibragem proteômica [11] e hormonal que liquidavam, entre outras coisas, com qualquer traço de obesidade, deixando os corpos torneados e musculosos, e correções e alterações genéticas as mais variadas, chegando até a troca de sexo a nível cromossomial [12]. O corpo humano começava a ser, naquela era também dourada para a medicina estética, moldado à forma dos deuses.
Dentro daquela boate, por exemplo, bem no meio da ZAL de número quinze, no Rio de Janeiro, Brasil, onde se reuniam pessoas que, em comparação com o resto da humanidade, eram rebeldes, transgressores e rudes, apenas Milena e Montez nunca haviam feito alterações estéticas. Nasceram, como todos os humanos nasciam, com codificações genéticas que lhes conferiam grande e saudável longevidade, mas afora isso, eram tão “puros” quanto seus ancestrais. Christian, inclusive, talvez por conta de seus altos níveis de testosterona, ostentava entradas em ambos os lados frontais de seu cabelo, sempre cortado muito baixo, indicando uma calvície iminente, e que nem lhe passava pelo espírito intenso e rude tratar. “Não era chegado a essas frescuras”, dizia ele, entre os dentes. Mas em Christian, sua irmã sabia, de algum modo aquela calva combinava, a ponto de deixar as mulheres ainda mais interessadas nele. Montez, no entanto, Milena também sabia, era na verdade, e no fundo, um romântico incorrigível, apesar de nunca negar o convite das garotas e colecionar namoradas.
Sendo assim, ser naturalmente atraente, com seu jeito másculo a moda antiga, como o era Christian Ramirez Montez, ou exoticamente linda, também naturalmente, como era Milena Ramirez Martins, já não era coisa tão comum. Ele, já foi dito, achava que alterações genéticas e cremes para homens eram coisas para a “porra de um tipo de homem” que ele não era. Ela costumava dizer que a natureza havia sido generosa com ela exteriormente, e mesquinha interiormente. Nem aos seus pais e irmãos ela explicava esse tom autodepreciativo em uma garota que sempre foi considerada espetacular por todos os parentes e amigos. Milena apenas dizia que estava mais preocupada em buscar o equilíbrio interior, do que interessada em beleza exterior.
O fato era que Milena não precisava se preocupar mesmo com aparência. A jovem, de corpo torneado e formas generosas, de pele profunda e sedosamente morena, de cabelos longos, lisíssimos e negros, e olhos cor do céu mais límpido e ensolarado, passou uma das mãos sobre a mesa, e pegou na manga da jaqueta de seu irmão, Christian Ramirez Montez, apertando o antebraço dele, enquanto tocava com a outra mão em um ponto de seu próprio pulso, onde outro adesivo imperceptível recebia comandos. Logo depois de tanborilar com os dedos uma determinada sequência neste adesivo, a jovem mulher disse:
— Cortei a conexão com nosso pessoal fora daqui, quero falar só com vocês, rapazes. Só vou falar isso uma vez. Nem mesmo pro Gui eu vou admitir isso. Só pra vocês dois. Eu sei que costumo passar a impressão de emocionalmente frágil, uma mulher bem incomum nos dias de hoje, mas eu tenho meus motivos para buscar o melhor nas pessoas, e o lado mais doce em mim mesma, confiem em mim. Eu tenho os meus motivos. Mas, apesar disso, desse meu jeitinho na minha, eu sou uma boa policial.
— Fato. — Confirmou imediatamente Danel.
— Sem sombra de dúvida. — disse também Montez.
— Então, Chris, por favor, faz como o Danel, confia em mim, eu consigo. Tem a equipe de apoio lá fora, e quase a delegacia inteira de olho na gente agora. Além de Danel, e você, o policial que todos temem e respeitam, cuidando de mim. — Ela ficou olhando de um para o outro por um instante, e depois de inspirar e expelir o ar pelo nariz, como um jogador dando sua última cartada, Milena continuou: — Eu dei duro nesta investigação, preciso que me apoie agora que vamos fechar o tempo desses caras.
Christian mostrou os dentes, não em um sorriso, mas apenas escancarando os lábios, como se fosse rosnar. Ele e o irmão Ramirez tinham o mesmo hábito, quando lutavam dentro de si mesmos com seus pensamentos. Chris entendeu o recado, percebeu sua irmã, todo mundo no trabalho sabia que Milena era dedicada, que lutava feito qualquer outro bom policial, com armas e mais ainda com os punhos, mas seu jeitinho doce fazia com que todos achassem que ela talvez, na rua, não fosse durona o suficiente. Ela precisava que o irmão, na frente de todos, acreditasse nela. Mas, antes, ela devia acreditar nele.
Milena tocou de novo no mesmo ponto do pulso, e disse:
— Escutas voltando online. Todos na escuta.
Montez, silencioso, ergueu um dos braços e fez certo sinal, e logo um robô surgiu trazendo mais cervejas. Milena havia bebericado uma até agora. Danel era um robô blindado de polícia, se passando por uma dispendiosa unidade de segurança pessoal, de desenho elegante e arrojado, mas metálico, não possuía aparência superficial humana, muito menos algo que simulasse um estômago. E Christian, parecendo imune ao álcool de verdade que as cervejas das ZALs continham, já estava na quinta caneca, que ele virou quase que de um gole só.
— Mmmmm-Aaaah! — Fez o policial Montez, e, depois de beber, lançou com toda força sua caneca vazia em uma parede próxima. A peça de cristal-plástico não quebrou, claro, mas ricocheteou e quicou, passando a poucos centímetros de outras pessoas sentadas nas mesas em torno, e seguiu deslizando pelo chão até acertar um garçom robô, que a recolheu.
— Porraaa! — Berrou Christian, com intensidade e verdadeira alegria. — Vamos pegar uns bandidos, magrelaaaa!
— Montez! — Ralhou Milena — Você quase acertou aquelas pessoas. E o que a chefe…?
— Ele não ia acertar ninguém, — intrometeu-se Danel — Chris joga basquete apostando créditos com os outros policiais. A trajetória foi perfeita demais, ele a calculou.
— Filho da puta de ferro velho esperto, porraaaa!
Subitamente Milena levou a mão ao peito, e retirou um tablet de dentro de um bolso interno da jaqueta branca e caríssima que ela usava, em seu disfarce de sensual e rica baladeira. O aparelho estava com sua estrutura moldável comprimida até a forma e tamanho de um celular, e estava, de fato, vibrando na mão dela, indicando o recebimento de uma chamada. Milena fez sinal para que os outros se calassem, dizendo:
— É o cara, o Germano, vou conectar nós três nessa ligação. — Dedilhou seu tablet, tocou novamente nos controles em seu pulso, e logo em seguida, atendendo quem estava ligando para ela, disse: — Natasha falando.
A superfície do aparelho não exibiu nenhuma imagem, essa conexão era só de áudio, e uma voz masculina, cruel, mas arrastada como a de alguém muito drogado ou bêbado, respondeu:
— Boa noitche, bebezinha. Você é a riquinha que quer facher negócios com chirm… Com o Germano?
— Sim, estamos aqui há muito tempo. Eu tenho a grana. Trás a DRV aqui, aquela, a pior, quero experimentar antes de…
Uma gargalhada esnobe.
— Acha mechimo, menininha rica, que o dinheiro do ichitatus chochial da chua família, que vochê tá querendo jogar no licho, compraaaa meu amor pelo meu rabo?
Outra gargalhada, que parecia brotar de algum inferno.
— Qual é o lance? — Quis saber “Natasha”.
— Faz seguinte, meu bem, chobe. Tomamos um uíshquezinho, conversamos amenidades, vochê aplica a DRV no chéu da chua boquinha, e viajaaaa numa boa, enquanto eu tomo conta de vochê, e daí minha nova cliente confere o padrão do bagulho, e depois fechamos egóchio.
— Não.
— Ahn, bebê, chobe, eu não cochitumo echituprar minhas clientes naum, eu churo pela minha mãechinha que tá no chéu.
Risadas lá do outro lado da ligação. Ele não estava sozinho, devia estar cercado de marginais que faziam sua segurança, claro.
— Combinamos que o negócio ia rolar aqui, em público, tá louco que eu vou aí.
— Chério agora, chou um homem de negóchios e eu… Ah, fodache, então num vem, cherochinha, boanoche.
— Espera! — Fez Milena.
— Chabia que o cheu narichinho bonitinho e arrebitado tava cochando para chentir o poder do bagulho doido que papai Chermano tem pra oferecher. É bomba nuclear, bebezinha, não pócho andar com icho por aí achim não, chei que me entende.
Antes que Milena pudesse responder, Montez falou, invadindo a conversa, incisivo:
— Ah se fuder, cara! Sozinha minha prima não sobe!
— Boa! — Gritou o traficante, batendo palmas lá onde estava — Booooooa, primo da Natasha! Ela pode chubir acompanhada, pronto. Meu pechoal aí embaixo já me cantou que é Natasha, um carinha meio careca e nervocho, vochê primããão, e um robô protetor. Echitou bem em chima de vochês, torre blindada sssul, no apê seichi mil duzentos e trêichi…
Coincidentemente, no entanto, quando Milena, Chris e Danel fizeram menção de se levantar, ouviram o marginal acrescentar:
— Maaaaaaish… Só o robô vem com ela. O Ochimov [13] dele não deixa ele atirar, já o primão da Natashaaaaa, eche pareche que é muito nervochinho. Ah, muleque, vai ficar aí, de cachitigo!
Desta vez, antes que Christian pudesse reagir, Milena tomou a dianteira:
— Estamos subindo, eu e o robô. — E desligou.
Danel disse, com sua voz sempre gentil e tranquilizadora:
— Eles não sabem que sou um modelo policial avançado, pensam que sou um protetor comum, caro, mas comum. Posso neutralizar dez deles, em menos de trinta segundos.
— E pode me dar cem por cento de certeza que nenhum desses merdas vai balear minha irmã, ferro velho? E se tiverem mais de dez putos lá em cima?
— O aposento ainda será varrido por sensores. Não posso fornecer dados precisos agora, Christian.
Diante da resposta negativa de Danel, Milena pegou a mão de seu irmão, e ambos ficaram se olhando, por um momento. Então Christian desviou por um segundo o olhar, e disse:
— Vai.
Ela apertou a mão dele, sorrindo, grata, e dizendo:
— Te vejo já.
— Se der merda estou lá em um minuto.
— Eu sei. Eu vou ficar bem, prometo! — E Milena se afastou de Christian, seguindo em direção ao hall de elevadores da boate. No meio do caminho ela murmurou, para que sua escuta captasse:
— Central, vou subir com Danel, vocês pegaram o número do apartamento? Tenho apoio dos drones [14]?
A resposta veio ligeira, na voz da própria delegada Geórgia, sua superiora, que disse, muito séria:
— Já estão voando até lá, em modo furtivo. Colocamos tudo que for orgânico naquele apartamento para dormir se você for ameaçada, e Danel te tira de lá imediatamente.
— Sim, madame. — foi a pronta resposta do robô, que caminhava firme, ao lado da policial Ramirez.
— Eu quero esse flagrante, Milena. Pega esse hijo de una putana pra mim. — Disse sua chefe, que confiou a ela essa investigação, que iria culminar com a prisão em flagrante de um dos traficantes de drogas de realidade virtual mais perigosos do país.
— Eu vou pegar. — Respondeu Milena, com sua voz de menina, mas em tom, ainda assim, duro e determinado.
. . .
A subida foi tensa, para Milena. Danel, apesar de sua aparência rígida, emanava tranquilidade. O robô, parceiro e amigo de Milena, não disse nada, não havia nada a dizer, era a forma dele demonstrar, ela sabia, que ele confiava plenamente na capacidade dela de lidar com a situação. Mas, humana, e sabendo por meio dos seus sensores que o elevador também não estava grampeado, bem que gostaria de ouvir aquela voz suave, elegante e bonita de Danel dizendo qualquer coisa. Na verdade queria que Danel possuísse a aparência exterior mais humana. Não, ela não acreditava nutrir nenhum tipo de fetiche (até a palavra lhe soava muito mal) por seu companheiro robô. Só queria que ele parecesse mais receptivo, e caloroso, para ela poder abraçar e ser abraçada por um cara que, apesar de muito diferente, ela queria tão bem e que a respeitava de um jeito tão elegante, carinhoso e fraterno.
Antes de ser a investgadora Milena Ramirez, ela era um especialista em robótica teórica e aplicada, tendo já, ainda bem jovem, publicado alguns trabalhos bastante importantes em sua área. Por isso ela havia sido destacada para trabalhar com Danel. Já há muito tempo robôs atuavam como suporte ao lado de patrulheiros e militares exploradores, mas Milena e seu amigo feito de metamateriais sintéticos metalizados pertenciam a primeira turma da Unidade de Investigação e Policiamento Tático com Assistência Robótica, ou seja, era a primeira vez que robôs, apoiando humanos, não só reprimiam, mas também investigavam crimes.
Por isso Milena entendia muito bem como Danel era criado, como funcionava, e como era inicialmente programado. Com os componentes essenciais e o equipamento apropriado, ela mesma montaria qualquer robô, mesmo os com aparência humanoide. Todos eram máquinas extremamente sofisticadas, mas ainda assim, máquinas. E ela, talvez, precisasse era de um pouco de calor humano agora.
No entanto, surpreendente como sempre, Danel, aquele robô que deveria ser apenas uma ferramenta de apoio, e que vinha demonstrando ser um fiel e valoroso amigo, parecendo ouvir os pensamentos dela, pousou delicadamente uma de suas grandes e poderosas mãos, quase tão sólidas quanto o mais duro diamante, sobre um dos ombros da jovem, e disse:
— Vai ficar tudo bem, Milena. Você é uma grande policial.
Ela se atirou no pescoço blindado e frio dele, e o abraçou por um momento, com gratidão e ternura, ao que ele respondeu, abraçando-a cuidadosamente de volta. Um momento depois ela o largou e, ajeitando sua jaqueta, Milena respondeu, com os olhos marejados:
— Obrigada, Dan.
. . .
Negociavam já há uma meia hora. Germano, o cara de voz arrastada, estava sentado de pernas cruzadas e braços abertos em um sofá em forma de “u”, na elegante, agradável e luminosa suíte seis mil duzentos e três, em que o bandido estava hospedado. Ele estava de costas para a ampla janela da sala, e sentado de frente para Milena. Aquela janela possuía pesada blindagem que não permitiria a passagem de nenhuma bala perdida até bem acima do calibre máximo permitido na ZAL. E as delegacias especializadas das ZALs faziam um bom serviço impedindo que armamento ilegal entrasse nos parques temáticos. Então, a princípio, ninguém precisava temer nada vindo de fora.
Mas ali dentro da suíte, por todos os lados havia homens e mulheres armados, dois deles bem atrás de Germano, com linha de tiro direta e livre para pegar Milena e seu amigo robô.
Lá fora, na noite escura e violenta da ZAL-15, os projéteis traçantes, com seus rastros ígneos, percorriam por entre os prédios da parte arruinada do Centro do Rio de Janeiro, onde aconteciam os constantes jogos de guerrilha urbana. Milena Ramirez sabia que em algum lugar por ali, naquele céu noturno, os blindados drones da polícia voavam, com suas pequenas e aerodinâmicas fuselagens obscurecidas, e em silêncio quase absoluto, controlados remotamente desde lá da Central de Comando, na Delegacia da Leopoldina, logo depois das muralhas da ZAL. As armas não letais destes drones, de concussão sônica e de uso exclusivo do governo, cujos disparos a blindagem das janelas não podia segurar, estavam prontas para colocar todo mundo ali desacordado, menos Danel.
O robô, grande e, naquele momento, intimidador, estava de pé, ao lado de sua amiga, executando uma varredura padrão, como qualquer robô normal de proteção pessoal faria, seus olhos percorrendo toda a sala. Um dos seguranças armados, atrás de Germano, uma mulher grandalhona, mostrou um fuzil e disse:
— Aí, ô de metal, nem tenta! Essa munição atravessa qualquer protetor pessoal!
— Shhhhhh. — Fez o líder, Germano, que, ao contrário do que sua voz falha e arrastada fazia pensar, era um sujeito elegante, em um terno caro, e possuía um porte até altivo, e atrevido. Seu rosto era anguloso, e possuidor de um olhar que, mesmo selvagem e cruel, parecia ser muito astuto, muito inteligente.
A um sinal de Germano, um homem trouxe uma caixa de madeira envernizada, madeira de verdade, muito bonita, e a colocou em uma mesinha que estava entre Milena e Germano.
— Bebê, toda chua. Icho não é igual as porrinhas que vochê encontra por aí não. Icho é arte pura. Vochê nauuum chente chó o que as pechoas gravadas nessa DRV chentiram, vochê vira essas pechoas!
Milena sabia bem como aquela bomba neural funcionava. Quando a nova droga apareceu, converteu jovens em assassinos frios, da noite para o dia. Meninos e meninas agitados e rebeldes, mas normais, cujos pais permitiram que viessem as boates da ZAL-15, passaram a ser matadores cruéis depois de usarem às escondidas essa droga de realidade virtual, DRV, por um tempo. Três deles mataram colegas de escola, um o próprio pai. Alguém arrumou um jeito de levar a violência das ZALs para o mundo lá fora, e isso a polícia não podia deixar acontecer. Milena vinha investigando há um ano, e descobriu que somente uma quadrilha, a de Germano, era a fonte dessa nova e brutal droga.
— Vai, neném, vai. — Disse o traficante, cantarolando em tom de troça. — tem de tudo aí, maichi a DRV escolhe vochê achim como vochê a echicolheu. Vochê planta a pachitilha no chéu decha chua boquinha tão linda, e cheu inconschiente echicolhe quem vochê cherá, uma achassina, piromaníaca, pervertidaaaaa… O inferno é o limite!
Milena abriu a caixa e pegou a pastilha, um adesivo microprocessado igual aos seus, humanada polícia, mas feito para grudar em mucosas úmidas, mais especificamente no tecido dentro da boca humana. Os sensores em seu corpo estavam prontos para ler os efeitos da DRV e documentar, diretamente na Rede, o flagrante contra Germano e seus comparsas. Mas seus equipamentos de policial também iriam procurar amenizar ao máximo o efeito da droga, o que, segundo os peritos e consultores, iria reduzir em quarenta por cento a penetração da personalidade ruim contida naquele chip de DRV na personalidade real de Milena… No entanto ela teria que usar seu treino e sua força de vontade para lutar contra os outros sessenta por cento de pressão neural da DRV, e havia indícios de que aquela DRV podia converter uma pessoa normal e mais sensível em um psicótico com apenas trinta e cinco por cento de sua potência, embora os estudos apontassem que era preciso mais do que uma única exposição. Mas estudos às vezes falham.
Ela estava insegura, sim, mas a verdade era que, apesar do perigo de usar aquela DRV, ela estava com tanta determinação em prender aqueles miseráveis, e salvar as vidas que certamente eles iriam destruir, que não estava hesitando por medo. Era outra coisa… Uma sensação…
Continua…
Ato de Fé 1 – Enganar um Deus (Livro)
Livro 1 da série space opera C7i Ato de Fé. Marcus Stone perdeu tudo, o filho, a esposa, sua vida inteira. A culpa é da inteligência artificial que comanda a Agência C7i, e no século 23 Stone inicia seu plano de vingança, que vai arrastar a engenheira Milena Ramirez e o bioquímico Guilherme Borges para…
Ato de Fé 1 – Enganar um Deus (eBook)
eBook 1 da série space opera C7i Ato de Fé. A engenheira e ex-policial Milena Ramirez e o bioquímico Guilherme Borges enfrentam a morte no mais solitário dos mundos, o espaço, enquanto tentam apoiar um ao outro dentro da obscura estrutura da Agência C7, que permite à humanidade existir no Universo. O bioquímico e a…
Notas:
[1] Gilgamesh: foi um rei da Suméria, semilendário, que viveu aproximadamente em 2750 AC, e personagem principal da Epopeia de Gilgamesh, um épico mesopotâmico preservado em tabuletas escritas com caracteres cuneiformes, que conta sua jornada em busca da imortalidade.
[2] Tabula rasa: é uma expressão latina que significa literalmente “tábua raspada”, e tem o sentido de “folha de papel em branco”. Como metáfora, o conceito indica uma condição em que a consciência é desprovida de qualquer conhecimento inato — tal como uma folha em branco, a ser preenchida.
[3] Referência à matéria bariônica: todo o material composto principalmente de prótons, nêutrons e elétrons. Ou seja, nós, planetas, estrelas e galáxias.
[4] Katana: é o típico sabre longo japonês, e foi a arma mais usada no Japão medieval. A katana era muito mais do que uma arma para um samurai, era a extensão de seu corpo e de sua mente.
[5] Gembloux: (em valão: Djiblou, em neerlandês: Gembloers) é uma cidade e um município da Bélgica localizado no distrito de Namur, província de Namur, região da Valônia. Em Código 7 Infinidade também é um termo usado pela Agência C7 para designar seus Agentes Operativos com capacidades psiônicas (telepatas, premonitores, visualizadores à distância, telecinéticos, etc) que têm sua base central de treinamentos, pesquisa e operações na cidade belga de mesmo nome.
[6] Psíquicos: De “psiônica”. Seres capazes de fazer uso da mente para produzir fenômenos paranormais. Exemplos disso incluem telepatia, telecinese, etc. É um termo muito usado em ficção, ou em outros trabalhos sobre fantasia e ficção científica bem como em vídeo games, especialmente nos RPGs. Por sua vez, o fator ou energia utilizado para obter um evento para psíquico é chamado psiônico. Embora esta energia e as habilidades adquiridas por meio dele sejam controversas, pesquisadores dos fenômenos para psíquicos têm desenvolvido numerosas hipóteses sobre o assunto.
[7] Cinturão de Van Allen: São zonas em forma toroidal, ou de “pneu”, em torno da Terra, contendo partículas altamente carregadas de energia, tais como prótons, elétrons e anti-prótons. Recebeu este nome em homenagem ao seu descobridor, o cientista James Van Allen.
[8] Dotdrive: O dotdrive equivale ao nosso pendrive atual, com uma capacidade imensamente superior, virtualmente ilimitada, pois usa tecnologia ponto-quântico para armazenar a nível atômico. Aqui Jussara manuseia o que se chama tecnicamente de dotdrive-livre, ou simplesmente dotdrive, pois todos os aparelhos nesta época usam como memória dotdrives, que quando no interior de tablets, por exemplo, passam a se chamar dotdrive-preso, ou eventualmente dotmemory. Dotdrives-livres são muito pouco usados, pois dados e softwares permanecem e rodam em nuvem por toda a rede interplanetária, chamada VRNet, ou, mais simplesmente, Rede, com maiúscula.
[9] Onipresença: É a capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Em teologia, a onipresença é um atributo divino segundo o qual Deus está presente em todos os pontos da criação (em todos os pontos do Universo).
[10] Telomerase: é uma enzima descoberta por Elizabeth Blackburn e Carol Greider em 1985, que tem como função adicionar sequências específicas e repetitivas de DNA à extremidade dos cromossomos, onde se encontra o telômero. Estudos recentes sugerem ser possível reverter o processo de senescência celular incrementando, de forma artificial, a quantidade de telomerase nas células.
[11] Proteômica: É o estudo do proteoma (conjunto completo de proteínas e variantes de proteínas numa célula),sendo um método direto para identificar, quantificar e estudar as modificações pós-traducionais das proteínas em uma célula. Este termo começou a ser utilizado em 1995 como uma forma de descrever proteinas que são expressas no genoma de um organismo, tecido, organela ou célula isolada.
[12] “Cromossomo sexual”: é um tipo de cromossomo, encontrado em suas células, na maioria dos organismos determina o sexo dos indivíduos. A maioria das plantas e animais são organismos diploides (2n): possuem duas cópias de cada cromossomo. Nos núcleos das células, os cromossomos são encontrados em conjuntos de pares idênticos, excetuando-se um par de cromossomos. Os cromossomos pareados são chamados de autossomos. Os cromossomos não pareados são chamados de cromossomos sexuais. No caso da espécie humana, o total de cromossomos é de 23 pares, sendo 22 pares de autossomas e um par de cromossomos sexuais (em humanos, feminino XX ou masculino XY).
[13] Pronúncia incorreta de Ozimov (Algoritmo): Técnica desenvolvida que consiste em um algoritmo de aprendizagem de máquina, cuja função abstracional está focada na identificação de contexto de situações decisórias da Inteligência Artificial na qual está implantado, sopesando tais decisões de acordo com três critérios, a saber: quanto bem causa, quanto mal causa, e quanta justiça gera. Como os instintos mais básicos e inescapáveis do ser humano, em um robô o Algoritmo Ozimov está na raiz de cada decisão e recorre a um banco de dados de situações éticas básico, mas amplo, que, no entanto, vai crescendo de acordo com a vivência da máquina. Ou seja, a máquina não toma nenhuma atitude sem que esta passe primeiro pelo Algoritmo Ozimov (isso está garantido tanto por estruturas de software quando de hardware, e está previsto em cláusula da Constituição Mundial como de uso obrigatório, sendo crime gravíssimo a fabricação de robôs sem essa salvaguarda), e quanto mais atitudes éticas a máquina sopesa e compreende, mais refinado fica o algoritmo. O nome do algoritmo é a pronúncia do sobrenome em russo do bioquímico e escritor de ficção científica Isaac Asimov, criador de contos e romances protagonizados por robôs que seguiam fundamentalmente as Leis da Robótica, de sua autoria e que serviram de inspiração para toda uma vertente da engenharia robótica voltada a criação de Inteligências Artificiais dotadas de comportamento ético, culminando no pequeno e rudimentar robô chamado de Nao, da Aldebaran Robotics, no ano de 2010, que foi a primeira máquina dotada de princípios éticos (Revista Scientific American Brasil, Ano 8, Número 102, Novembro de 2010), e, em meados do século seguinte, na criação e aprimoramento do Algoritmo Ozimov e de sua técnica de aplicação.
[14] Drone: um Veículo Aéreo Não Tripulado (VANT) ou Veículo Aéreo Remotamente Pilotado (VARP), também chamado UAV (do inglês Unmanned Aerial Vehicle) e mais conhecido como drone (zangão, em inglês), é todo e qualquer tipo de aeronave que não necessita de pilotos embarcados para ser guiada. Esses aviões são controlados a distância por meios eletrônicos e computacionais, sob a supervisão e governo humanos, ou sem a sua intervenção, por meio de Controladores Lógicos Programáveis (CLP).