Salvador, 1971
A cidade era um útero de sons e fúria. Mônica Deveraux, em uma de suas primeiras missões de campo para os Dragões Vermelhos, estava lá para observar os focos da contracultura que o regime tanto temia. Nos relatórios que havia lido, um nome se repetia com a insistência de um refrão psicodélico: Raul Seixas e sua Sociedade da Grã-Ordem Kavernista.
Ela o encontrou em um porão no Pelourinho, um lugar que não estava nos mapas turísticos. A placa na porta, gasta pelo tempo, dizia “Ariya”. Mônica sentiu a ressonância no ar antes mesmo de entrar. Era um cheiro familiar de poeira de estrelas e uísque barato. Uma filial do Esbórnia, sem dúvida, um daqueles nós na realidade onde as histórias se encontram.
Lá dentro, Raul e os Kavernistas estavam no palco, um caos performático de rock, baião e teatro do absurdo. Mônica, misturada à pequena plateia de artistas e sonhadores, observava. Ele não era apenas um músico; era um canal, um vórtice de energia criativa. Quando a apresentação acabou, os dois se esbarraram no balcão do bar.
— Só de passar perto dá pra sentir. Você não é deste mundo… literalmente — disse Raul, inclinando a cabeça para Mônica sem olhar diretamente para a mulher, enquanto se atirava no banco ao lado e pedia um uísque. — Bruxa? Xamã? Mãe de santo?
— Bicho — respondeu ela, a voz calma em meio ao barulho. — Entendi como você veio parar aqui. Esse lugar não é para qualquer um sem muita criatividade, tem que ser meio maluco.
Raul, suado e com os olhos faiscando, virou-se e finalmente a encarou. E por um instante, ele viu. Viu a escuridão antiga que se aninhava atrás daqueles olhos de chocolate, naquele rosto incrível.
— Eu te conheço? — ele perguntou, a voz um sussurro.
— Ainda não — respondeu Mônica, um sorriso mínimo nos lábios. — Mas aqui vai um conselho grátis: essa história de Grã Ordem Kavernista vai lhe custar muito caro, pode perder seu emprego.
Antes que Raul pudesse responder, seus olhos se arregalaram, focando em algo por sobre o ombro de Mônica. Um homem alto, de topete e um macacão branco cravejado de joias falsas, acenou para ele do outro lado do bar. Aquele rosto! Não um imitador. O Rei. Raul piscou, atordoado pela visão de seu maior ídolo, e quando se virou novamente, a mulher havia sumido. Não saído. Simplesmente sumido, como uma nota que se desvanece no ar.
Rio de Janeiro, 1974
A cidade fervia sob o sol de dezembro e a bota da ditadura. A missão de Mônica, vinda do chefe do SNI, João Batista Figueiredo, era agora oficial. Para um homem como Figueiredo, que entendia o poder não apenas pela força das armas, mas pela manipulação das mentes, Raul Seixas havia deixado de ser um mero incômodo para se tornar um “ativo” estratégico. O sucesso avassalador de Gita e a mística da “Sociedade Alternativa” representavam uma arma psicológica de potencial incalculável. Eliminá-lo seria criar um mártir. A abordagem de um verdadeiro estrategista era mais sutil. A ordem para Mônica, sua agente mais singular, era a de uma avaliação profunda: “Não o neutralize”, disse a voz ríspida no telefone. “Disseque-o. Entenda o que o move, suas fraquezas, seus vícios, seus deuses. Um homem que pode fazer a juventude do Brasil cantar a mesma canção é mais influente que um editorial de jornal. Descubra se podemos nós mesmos escrever a próxima música dele.”
Ela o encontrou em uma viela escura na Lapa. Ele estava sendo acuado por capangas de gravadora. Mônica interveio. Rápida, silenciosa, letal. Em segundos, os homens estavam no chão. Ela olhou para Raul. Desta vez, ele a reconheceu. O choque em seus olhos era o de quem vê um fantasma se materializar. Ela deu um aceno quase imperceptível e se dissolveu nas sombras.
Mas desta vez, Raul não a deixaria escapar. Ele sentiu o rastro que ela deixava, um vácuo na canção da cidade.
Na manhã seguinte, um envelope foi deslizado por debaixo da porta do quarto de hotel onde Mônica se hospedava. Dentro, nenhum nome, nenhuma ameaça. Apenas um endereço em Santa Teresa e o desenho de uma chave antiga, uma chave que parecia ter sido tirada de um sonho. Mônica, a agente treinada na paranoia, deveria ter ignorado, deveria ter se mudado. Mas o desenho… havia algo nele, uma ressonância, como uma melodia esquecida de sua infância antes da escuridão. Ela foi.
O apartamento em Santa Teresa era um caos criativo. Raul a esperava com dois copos de uísque.
— Eu sabia que era você — ele disse, a voz rouca, sem rodeios. — Desde aquela noite no Ariya, em Salvador. Eu achei que tinha sonhado.
— Alguns sonhos são mais reais que outros — respondeu Mônica, aceitando o copo. — Mas a pergunta continua a mesma: como você me achou?
Raul sorriu.
— Da mesma forma que da primeira vez. Eu segui o silêncio. Mas desta vez, eu sabia o que estava procurando. — Ele a encarou, os olhos vendo através do tempo. — Naquela noite, você era um aviso. Hoje, você é a resposta para uma pergunta que eu nem sabia que tinha feito. — Ele a estudou, a compreensão crescendo em seu rosto. — Eu sei o que você é. Você tem o cheiro da terra molhada da primeira noite do mundo.
Mônica, pela primeira vez em décadas, não soube o que responder.
— Sabe — continuou ele, dedilhando um acorde melancólico —, eu escrevi uma música. Achei que era sobre o Bhagavad Gita. Sobre Deus e o homem. — Ele a fitou, a certeza em seu olhar era absoluta. — Mas agora eu sei. A música sempre foi sobre você.
E então, ele tocou.
— Eu sou a luz das estrelas / Eu sou a cor do luar / Eu sou as coisas da vida / Eu sou o medo de amar… — Cada verso era uma faca, dissecando a alma de Mônica. Quando ele cantou — Eu sou a beira do abismo —, uma lágrima solitária, a primeira em anos, escorreu pelo rosto dela. Ele não estava cantando uma canção; estava recitando a biografia de sua alma amaldiçoada.
Naquela noite, eles não se tornaram amantes. Tornaram-se algo mais raro e mais profundo: grandes e verdadeiros amigos, e cúmplices. Duas notas dissonantes que, juntas, criavam uma harmonia impossível no caos do universo.
A amizade deles foi forjada naquele instante, mas se temperou nos anos que se seguiram. Meses depois, quando Raul foi levado aos porões do DOPS, não foram os contatos da gravadora que o tiraram de lá. Foi Mônica. Ninguém nunca soube como um relatório anônimo, detalhando os esquemas de corrupção de um coronel específico, apareceu na mesa de um general em Brasília. Raul nunca perguntou. Ele apenas a encontrou dias depois, os olhos dela mais sombrios que o normal, e lhe serviu um uísque em silêncio. Um brinde mudo entre os dois.
Em troca, o apartamento dele em Santa Teresa tornou-se um santuário para Mônica. Houve uma noite, em 1986, em que ela chegou sem avisar. Não havia sangue de inimigos em suas roupas, mas o de uma inocente pesava em sua alma. A caçada a um espião em Nova Iguaçu terminara em um acidente de carro, na morte de uma mulher, mãe de um garotinho. A “besta” não sentira a glória da caça, apenas o gosto amargo do erro, e agora arranhava a jaula de sua humanidade com a fúria da culpa. Raul olhou para ela, viu o abismo, e não disse nada. Apenas pegou o violão.
— Se o universo é uma grande piada cruel, a gente tem que pelo menos tentar entender a graça. — E tocou para ela uma melodia sobre um carimbador maluco, uma canção tão absurdamente lúdica que quebrou o feitiço da escuridão. Naquela noite, cantando e conversando com Mônica, ele salvou o mundo dela.
Foi numa dessas madrugadas filosóficas que ela falou sobre a Treva que Tudo Abraça e como essa Escuridão Primordial se dividia em facetas de um cristal em um sem-fim de nuances, uma delas era o Povo Antigo, que por sua vez se metamorfoseava constantemente em mitos e lendas tão reais quanto a música que ele fazia. Raul ouviu, fascinado, e no dia seguinte, rabiscou: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Ele não estava apenas compondo. Estava traduzindo a existência da grande magia por trás do mundo, que causou a existência de maravilhas feito Mônica.
Ipamoará, 1988
Raul estava doente. O corpo, castigado por anos de excessos, começava a ceder. Mônica tomou uma decisão. Ele, que via tantos mundos em sua mente, merecia ver um multiverso de verdade.
Ela o levou para a costa de Búzios, para um trecho de praia que não constava nos mapas. A bruma era densa. O barco atravessou o véu e a ilha se revelou. Ipamoará. Praias Pretas. A Ilha Além do Mundo.
Raul, animando-se, olhava para tudo com os olhos de uma criança. Para as Flores de Fogo, para os Ciprestes de Mahyara, corvos que só existiam ali, flora magnífica, fauna desconcertante.
— Isso… isso é real? — ele sussurrou.
— Mais real do que muita coisa que a gente vive — respondeu Mônica, guiando-o gentilmente pelas ruas de Tabaitauna, após aportarem na ilha e fazerem pequena viagem de ônibus, até a matriz do bar onde eles se conheceram em Salvador, o Esbórnia.
Por dentro, o lugar desafiava a física. A clientela era… eclética. Em uma mesa, um cavaleiro de armadura enferrujada bebia hidromel. Em outra, um detetive de sobretudo fumava um cachimbo, conversando com um androide dourado. Raul, o Maluco Beleza, sentia-se, pela primeira vez, perfeitamente em casa.
Havia um pequeno palco no fundo, com um violão solitário apoiado em um suporte. Raul caminhou até ele como se fosse hipnotizado. Sentou-se, afinou as cordas e começou a tocar. Não uma de suas músicas, mas algo novo, uma melodia que parecia nascer da própria atmosfera do lugar.
A clientela improvável virou-se para ouvir. Raul sabia que eles estariam lá. Um homem com um raio pintado no rosto parou de beber. Um velho músico de blues, cuja lenda dizia ter vendido a alma numa encruzilhada, sorriu com conhecimento. Uma jovem com olhos de caleidoscópio balançava a cabeça no ritmo. Eram todos criadores e criaturas, e reconheciam um dos seus.
Quando a última nota se desvaneceu, o silêncio foi quebrado por aplausos retumbantes. Da penumbra atrás do balcão, uma figura se aproximou. Era um homem alto, vestido com um macacão branco imaculado, cujas lantejoulas pareciam capturar a luz das estrelas e devolvê-la em dobro. Um topete negro desafiava a gravidade, olhos azuis amigáveis e um sorriso torto, ao mesmo tempo melancólico e todo-poderoso, brincava em seus lábios. Raul prendeu a respiração. O ar em seus pulmões pareceu se transformar em ouro líquido. Era ele. O Rei, não como uma visão, mas como uma força da natureza.
— Uh-huh — disse o Administrador do Esbórnia, a voz um barítono suave que parecia o próprio som do veludo e do trovão. Falava inglês, mas todos entendiam. — Sua música já vive aqui, Raul. E, se quiser, você também pode.
O Administrador tocou a testa de Raul, e o músico viu. Viu realidades onde “Metamorfose Ambulante” era o hino de revoluções pacíficas, onde “Tente Outra Vez” salvava vidas, onde suas palavras eram estudadas por filósofos em galáxias distantes. Viu que sua arte, sua essência, era verdadeiramente imortal. Um sorriso de paz, o mais puro que Mônica já vira, iluminou seu rosto cansado.
Um ano depois, o mundo soube que Raul Seixas havia morrido. Mônica sorriu. Ela sabia a verdade. Raul não morreu. Ele apenas mudou de palco, tornando-se um dos Administrados daquele bar na encruzilhada de todos os mundos e ideias, seu contato especial do outro lado do véu, esperando por sua velha amiga com um copo de uísque e uma nova canção.
Por Wagner RMS.
Ouça o Podcast Deep Dive da IA Gemini:
“Mônica Deveraux, a arma secreta do Brasil entre ditadura, espionagem e Trevas Primordiais”.
Mônica – Livro 1
Primeiro livro da série Mônica Deveraux, de Wagner RMS. Em pleno regime militar brasileiro, Mônica Alencar Deveraux, jovem inteligente e doce, é presa injustamente e, antes de morrer, é transformada pelo Povo Antigo (sonhos e pesadelos que ainda vivem em florestas e vales esquecidos, e mesmo aqui, nos escuros interstícios da cidade) em uma poderosa Criatura da Escuridão. Hoje, agente federal e uma arma estratégica no jogo dos poderes políticos, Mônica descobre a Amizade e o Amor, mas vê a si mesma como um monstro, apesar desta poderosa brasileira ser tão bela e sedutora. Ela deve se permitir Amar?
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