A Técnica de Escrita de Machado de Assis, Inspire-se

A Técnica de Escrita de Machado de Assis, Inspire-se

A voz que desnuda a alma: o narrador machadiano

A inovação mais duradoura e influente de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) reside na construção de uma voz narrativa singular, que transcende a mera função de contar uma história para se tornar o próprio epicentro da investigação psicológica e filosófica. Em suas obras o narrador não é um guia transparente para os eventos, mas um prisma complexo através do qual a realidade é refratada, distorcida e questionada. Para a escritora ou o escritor contemporâneo, dominar a arte do narrador machadiano significa aprender a manejar a subjetividade como a mais potente ferramenta para explorar as seminais inconsistências humanas. Vamos a uns bons spoilers?

O defunto-autor e o advogado ciumento: desconstruindo a confiança do leitor

A pedra angular da modernidade literária de Machado é a sua antecipação e maestria no uso do narrador não confiável. Em suas mãos, a perspectiva em primeira pessoa, tradicionalmente um veículo para a intimidade e a verdade confessional, transforma-se em um mecanismo de dúvida, ambiguidade e manipulação deliberada.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), a falta de confiabilidade é estabelecida desde a premissa. O narrador, Brás Cubas, se autodenomina um “defunto-autor”, uma condição que, segundo ele, lhe confere uma liberdade inédita. Ele argumenta que “a franqueza é a primeira virtude de um defunto”, sugerindo que, livre das pressões sociais e da necessidade de preservar sua reputação, pode finalmente contar a verdade nua e crua sobre sua vida. Contudo, essa liberdade se revela não como um caminho para a honestidade, mas para o cinismo absoluto. Desprovido de qualquer responsabilidade moral, Brás Cubas narra sua existência medíocre com uma volubilidade caprichosa, expondo suas vaidades, seu egoísmo e sua frivolidade sem remorso, mas também sem uma verdadeira autocrítica. A sua narrativa não segue a lógica dos eventos, mas a do seu próprio arbítrio, tornando o leitor refém de um guia que admite abertamente sua própria insignificância.

Se Brás Cubas é um cínico liberado pela morte, Bento Santiago, o narrador de Dom Casmurro (1899), é um manipulador motivado pelo ciúme. Toda a sua narrativa é uma construção retrospectiva, um elaborado processo judicial no qual ele atua simultaneamente como advogado de acusação, juiz e única testemunha. A narração monofônica e psicológica aprisiona o leitor dentro da mente de Bentinho, forçando-o a ver Capitu apenas através do filtro de sua suspeita e paranoia crescentes. Ele seleciona, omite e reinterpreta memórias para construir um caso irrefutável de adultério, transformando gestos ambíguos em provas cabais. A genialidade de Machado está em criar uma narrativa tão eloquente e convincente que, por décadas, a culpa de Capitu foi tida como um fato, quando na verdade o romance é um estudo sobre a natureza destrutiva do ciúme e a impossibilidade de se conhecer a verdade do outro.

A utilização do narrador não confiável por Machado não é um mero artifício para criar suspense. É a manifestação literária de um profundo ceticismo filosófico sobre a natureza da verdade. Ao aprisionar o leitor na subjetividade de seus narradores, Machado dramatiza a ideia de que uma verdade objetiva e imparcial é inacessível. A história que Bentinho conta é a sua verdade, mas o romance como um todo questiona a validade universal dessa verdade, deixando o leitor não com a tarefa de resolver um mistério, mas com a de confrontar a própria impossibilidade de sua resolução.

Aplicação prática para nós, escritores e escritoras: Para empregar esta técnica, o escritor deve construir um narrador com uma agenda clara, seja ela consciente ou inconsciente. A chave é a dissonância entre o que o narrador diz e o que a narrativa sugere. Isso pode ser alcançado através de contradições internas, lapsos de memória convenientes, uma ênfase desproporcional em certos detalhes e a justificação excessiva de suas próprias ações. O objetivo não é enganar o leitor de forma barata, mas convidá-lo a uma leitura ativa, a “ler nas entrelinhas” e a questionar a autoridade da voz que o guia.

“Leitor amigo, leitora benévola”: a conversa direta como Ferramenta de cumplicidade e manipulação

Machado de Assis rompe sistematicamente a “quarta parede”, dirigindo-se diretamente ao leitor. Este recurso, conhecido como metalinguagem, não é utilizado como um mero jogo formal, mas como uma estratégia sofisticada para controlar a relação entre o texto e seu receptor. O narrador machadiano constantemente comenta sobre o próprio ato de escrever, a estrutura do livro e os desafios da narração.

Em Dom Casmurro, por exemplo, o primeiro capítulo é dedicado a explicar a origem do título, com Bentinho a declarar: “Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. […] Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro”. Essa consciência explícita de que está a produzir uma obra literária serve a múltiplos propósitos. Por um lado, cria uma falsa sensação de intimidade. O narrador trata o leitor como um confidente, partilhando as suas dificuldades de escritor e pedindo a sua benevolência: “Não me tenhas por sacrílego, leitora minha devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no estilo”.

Por outro lado, essa mesma técnica é uma forma de manipulação. Ao antecipar as reações do leitor, o narrador tenta neutralizá-las. Em Memórias Póstumas, Brás Cubas prevê a impaciência do seu público: “Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão…”. Ao fazer isso, ele não só justifica as suas digressões, como também estabelece uma hierarquia intelectual, posicionando-se como o filósofo e ao leitor como alguém ávido por entretenimento superficial. O uso machadiano da metalinguagem contrasta fortemente com a tradição romântica, que a empregava para aproximar o leitor e gerar afeto e ternura. Machado, ao contrário, usa-a para criar distância, quebrar o fluxo emocional e forçar o leitor a uma postura de análise crítica.

Aplicação prática para nós, escritores e escritoras: A interpelação direta ao leitor deve ser usada com propósito. Para criar cumplicidade, o narrador pode partilhar uma vulnerabilidade ou um segredo. Para criar desconfiança, pode tentar adular o leitor ou antecipar e desarmar críticas. Este recurso é eficaz para controlar o ritmo narrativo, permitindo pausas para reflexão, e para moldar ativamente a interpretação do leitor. É uma forma de o autor, através do narrador, ensinar o leitor a ler a sua obra.

O pêndulo da memória: dominando a narrativa não-linear e a arte da digressão filosófica

Rompendo com a linearidade cronológica que dominava o romance do século XIX, Machado de Assis adota uma estrutura narrativa fragmentada, associativa e profundamente psicológica. Suas narrativas não são guiadas pelo relógio, mas pelo fluxo errático da memória, permitindo que a história salte entre passado, presente e reflexões atemporais. Essa estrutura é frequentemente descrita como um “estilo ébrio, tartamudo, gago”, um movimento pendular que espelha a própria natureza do pensamento humano.

Memórias Póstumas de Brás Cubas é o paradigma desta técnica. O romance começa com o fim — a morte do narrador — e prossegue de forma arbitrária, com capítulos que podem ter duas páginas ou duas linhas. A ordem dos eventos é ditada pelo capricho do defunto-autor, que se sente livre para interromper a história de seu caso com Virgília para dissertar sobre a forma do nariz de um rival, a filosofia do “Humanitismo” inventada por seu amigo Quincas Borba, ou a futilidade de sua própria invenção, o “emplasto Brás Cubas”.

Crucialmente, estas digressões não são meros desvios; elas constituem o coração filosófico da obra. É nelas que Machado aprofunda a sua crítica à sociedade e explora temas universais como a vaidade, a mortalidade e o autoengano. A digressão sobre o emplasto, por exemplo, não é apenas um interlúdio cômico; é uma metáfora para a vida inteira de Brás Cubas — uma grande ideia que nunca se concretizou e cujo único propósito era a autopromoção. A estrutura fragmentada, portanto, não é um sinal de desorganização, mas uma escolha estética deliberada que subordina a trama (a anedota) à reflexão (a filosofia).

Aplicação prática para nós, escritores e escritoras: Para construir uma narrativa não-linear eficaz, é preciso definir uma lógica interna que substitua a cronologia. Essa lógica pode ser a memória (um evento presente desencadeia uma lembrança do passado), um tema (capítulos agrupados em torno de uma ideia, como “ciúme” ou “vaidade”) ou a própria voz do narrador. As digressões devem ser tematicamente relevantes. Uma digressão bem-sucedida ilumina o enredo principal a partir de um ângulo inesperado, aprofundando a caracterização do narrador e a ressonância filosófica da história. Deve-se evitar que a digressão se torne um ensaio desconectado; ela precisa ecoar, de alguma forma, os conflitos e as questões da narrativa central.

A pena como bisturi: ironia, humor e crítica social

O humor em Machado de Assis raramente visa a gargalhada fácil. É, antes, uma ferramenta de precisão cirúrgica, um bisturi afiado com o qual ele disseca as patologias da alma humana e as hipocrisias da sociedade. Sua pena transforma-se em um instrumento de análise que expõe o que se esconde sob as aparências, revelando a verdade oculta por trás das convenções sociais.

O riso amargo: a anatomia da ironia trágica e do pessimismo cético

A ironia machadiana é de uma estirpe particular, frequentemente descrita pela crítica como “ironia trágica”. Ela emerge do vasto abismo entre as aspirações grandiosas dos personagens e a realidade medíocre de suas vidas, entre o que eles pensam que são e o que suas ações revelam. Este tom agridoce é a expressão literária de uma visão de mundo profundamente cética e pessimista, que questiona a nobreza dos motivos humanos e a possibilidade de verdadeira grandeza.

A obra-prima da ironia machadiana, Memórias Póstumas de Brás Cubas, estabelece esse tom desde a sua dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas”. A justaposição do macabro (o verme, o cadáver) com o sentimental (“saudosa lembrança”) cria um choque que é ao mesmo tempo cômico e filosoficamente desolador. A ironia permeia toda a obra, condensando críticas complexas em frases lapidares. A célebre declaração de Brás Cubas, “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”, é um exemplo perfeito: numa única sentença, o ideal do amor romântico é demolido e a base materialista e transacional da relação é exposta com uma precisão brutal.

A natureza “trágica” desta ironia reside no fato de que os personagens são, em sua maioria, cegos à sua própria condição. Brás Cubas narra sua vida de fracassos e futilidades com um ar de importância, acreditando sinceramente que suas reflexões são profundas e suas experiências, dignas de nota. A tragédia não está em um evento catastrófico, mas na soma de pequenas vaidades, egoísmos e oportunidades perdidas que compõem uma vida essencialmente vazia. O leitor, guiado pelo narrador distanciado, percebe essa “tragédia da mediocridade” de uma perspectiva que os próprios personagens não possuem. Essa discrepância entre a autopercepção do personagem e a percepção do leitor gera um sentimento complexo, um riso que é simultaneamente de escárnio e de compaixão, pois reconhecemos nesses personagens as falhas universais da humanidade. A ironia de Machado é, portanto, uma forma de conhecimento, uma lente que revela a verdade desconfortável que o discurso convencional tenta ocultar.

Aplicação prática para nós, escritores e escritoras: A ironia trágica não se baseia em piadas ou trocadilhos, mas na discrepância. O escritor, a escritora, pode criá-la ao fazer com que um personagem declare princípios nobres e, em seguida, aja de forma mesquinha; ao descrever um evento trivial com uma linguagem grandiloquente; ou ao justapor o sublime e o ridículo. A chave é permitir que o leitor veja a contradição que o personagem não vê. Isso cria uma profundidade que a crítica direta raramente alcança, pois convida o leitor a participar da descoberta da hipocrisia.

Desmascarando a elite: a sátira das convenções sociais, da política de favores e da hipocrisia burguesa

Machado de Assis foi um observador e cronista implacável de seu tempo, testemunhando a transição do Império para a República e a Abolição da Escravatura. Sua obra constitui um dos mais agudos retratos críticos da elite brasileira do século XIX. Ele expõe com precisão a superficialidade, o cinismo e a profunda dissonância entre os ideais liberais importados da Europa — que eram discutidos nos salões do Rio de Janeiro — e a realidade brutal de uma sociedade patriarcal, clientelista e fundamentada na escravidão.

Brás Cubas é a encarnação dessa elite. Membro de uma família abastada, sua vida é uma sucessão de projetos grandiosos que nunca se concretizam: torna-se um político medíocre, um amante frustrado e um inventor fracassado. Ele representa uma classe dominante ociosa, exibicionista e completamente insensível às classes inferiores, cuja única preocupação é a manutenção das aparências e do status social. A sátira de Machado não é panfletária; ele não precisa denunciar a elite, pois permite que ela se denuncie a si mesma através da voz de Brás Cubas.

Dom Casmurro, por sua vez, disseca a estrutura da família patriarcal e os valores conservadores da época. O romance expõe como a mulher, especialmente uma mulher de origem humilde, mas dotada de inteligência e iniciativa como Capitu, é vista como uma ameaça à ordem estabelecida. Capitu, com sua independência e “olhos de ressaca”, desafia o modelo de feminilidade passiva e submissa, tornando-se alvo da desconfiança e do ciúme que acabam por destruí-la. A tragédia de Bentinho e Capitu é, em grande medida, uma tragédia social, produto de um sistema que marginaliza e pune aqueles que não se encaixam em seus moldes rígidos.

Aplicação prática para nós, escritores e escritoras: A técnica satírica de Machado ensina que a crítica social mais eficaz é muitas vezes a mais sutil. Em vez de criar vilões caricaturais, o escritor pode construir personagens que são produtos de seu meio e que agem de acordo com a lógica distorcida de sua sociedade. A sátira emerge quando o autor expõe essa lógica ao leitor, permitindo que as ações e o discurso dos personagens revelem a sua própria hipocrisia. A crítica não está no que o autor diz sobre a sociedade, mas no que a sociedade, através dos personagens, diz sobre si mesma.

A arquitetura da psique: a construção de personagens complexos

Uma das qualidades mais celebradas da ficção machadiana é a sua capacidade de construir personagens de extraordinária complexidade psicológica e existencial. Longe de serem meros peões em um enredo, os personagens de Machado são universos em si mesmos, repletos de contradições, ambiguidades e profundezas que continuam a fascinar leitores e críticos. Ele foi um pioneiro da análise psicológica na literatura brasileira, mergulhando no abismo da alma humana para trazer à tona suas motivações mais secretas.

Para além dos “tipos”: a teoria machadiana do “caráter” e a criação de figuras ambíguas

Machado de Assis desenvolveu uma concepção própria de personagem, que ele distinguia explicitamente dos “tipos” sociais preferidos por muitos de seus contemporâneos realistas e naturalistas. Enquanto o “tipo” é, em grande medida, um produto de seu ambiente e de sua classe social, o “caráter”, na visão machadiana, é uma entidade psicológica complexa, movida por uma lógica interna, muitas vezes paradoxal e contraditória. Seus personagens não são definidos primariamente pela ação externa, mas pela vida interior, pela autoconsciência e pelo conflito de desejos.

Essa abordagem resulta em figuras de uma ambiguidade desconcertante. O exemplo supremo é Capitu, de Dom Casmurro. Ela é uma das personagens mais debatidas da literatura brasileira precisamente porque o romance se recusa a defini-la de forma unívoca. Através dos olhos de Bentinho, ela oscila entre a imagem de um anjo de pureza e a de uma dissimuladora perigosa. É ela uma vítima da paranoia de seu marido ou uma adúltera astuta? Machado arma o problema e, ao não fornecer uma resposta definitiva, força o leitor a confrontar a própria natureza da percepção e do julgamento. Capitu permanece um enigma, um reflexo da complexidade inerente ao ser humano, que não pode ser reduzido a rótulos morais simplistas.

Este mergulho na psique antecipa, de muitas maneiras, as explorações da psicanálise. Machado investiga o narcisismo (Brás Cubas), a neurose obsessiva (Bentinho), a vaidade e as máscaras sociais que os indivíduos constroem para navegar no mundo. Ele compreendeu que as motivações humanas são raramente puras e que o comportamento é frequentemente o resultado de um embate inconsciente entre desejos conflitantes.

Aplicação prática para nós, escritores e escritoras: Para criar personagens com a profundidade de um “caráter” machadiano, o escritor deve fugir de representações monolíticas. Um personagem torna-se complexo quando é dotado de desejos contraditórios (por exemplo, um desejo de segurança que entra em conflito com um desejo de liberdade). É preciso criar uma dissonância entre a sua persona pública (a máscara que apresenta ao mundo) e a sua vida interior. As suas ações devem ser motivadas por uma mistura de boas e más intenções, de forças e fraquezas. Em vez de dar respostas fáceis sobre a moralidade de um personagem, o escritor deve apresentar as suas ações e pensamentos de forma a gerar perguntas no leitor. A ambiguidade, quando bem construída, não é um sinal de indecisão do autor, mas um reflexo da própria complexidade da vida.

Tabela 1: O Kit de Ferramentas Machadiano para Escritoras e Escritores Contemporâneos

Técnica MachadianaPropósito na Obra OriginalAplicação em Gêneros Modernos (Exemplos)
Narrador Não ConfiávelQuestionar a verdade objetiva; explorar o autoengano e a manipulação psicológica.Thriller Psicológico: Um protagonista que narra um crime, mas cujas lacunas de memória e distorções o tornam o principal suspeito.
Metalinguagem/InterpelaçãoQuebrar a imersão para forçar a reflexão crítica; criar cumplicidade ou desconfiança com o leitor.Comédia Dramática (ex: Fleabag): Um personagem que se vira para a câmera para compartilhar comentários cínicos, tornando o espectador seu confidente.
Digressão FilosóficaAprofundar temas universais; revelar o caráter do narrador através de suas obsessões intelectuais.Ficção Científica Existencial (ex: Solaris): A narrativa da missão é interrompida por longas passagens teóricas sobre a natureza da consciência e do contato.
Ironia TrágicaRevelar o abismo entre a pretensão e a realidade do personagem; criticar a sociedade através da exposição de sua mediocridade.Sátira Social (ex: Succession): Personagens extremamente ricos e poderosos que falam de legado e poder, mas cujas ações são motivadas por inseguranças infantis.
Personagem Ambíguo (“Caráter”)Recusar respostas fáceis sobre a moralidade; refletir a natureza contraditória do ser humano.Noir/Ficção Criminal: Uma femme fatale que não é puramente má, mas uma figura complexa cujas motivações são uma mistura de sobrevivência, amor e ganância.

O Bruxo do Cosme Velho no século XXI – Machado de Assis e a ficção especulativa

Tendo dissecado o arsenal criativo de Machado de Assis, o exercício que se segue é uma especulação crítica: se o Bruxo do Cosme Velho vivesse e escrevesse hoje, como aplicaria o seu gênio cético, irônico e psicologicamente agudo aos gêneros da ficção científica e da fantasia urbana? A resposta exige que se imagine não uma simples transposição de cenários, mas uma profunda adaptação de suas técnicas e preocupações temáticas às novas paisagens da imaginação contemporânea.

Prelúdio ao fantástico: o insólito na obra canônica

Antes de projetar Machado no futuro ou em realidades mágicas, é fundamental reconhecer que o elemento fantástico não lhe era estranho. Embora seja o grande mestre do Realismo brasileiro, a sua obra é pontuada por rupturas com o verossímil. Machado, contudo, emprega o fantástico de uma maneira muito particular. Ele raramente o apresenta como uma realidade objetiva; em vez disso, o insólito emerge como uma manifestação da psique, associado ao sonho, à alucinação, ao delírio ou à loucura.

A premissa de Memórias Póstumas de Brás Cubas — um homem que escreve sua biografia depois de morto — é, em si, um ato de fantasia literária. Essa impossibilidade inicial funciona como um portal que liberta a narrativa das amarras do realismo convencional, permitindo a liberdade formal e filosófica que caracteriza o romance. Em contos como “A chinela turca” ou “O espelho”, eventos sobrenaturais são frequentemente resolvidos com explicações racionais no final, como sendo produtos do sonho ou da imaginação exaltada. Machado utiliza o fantástico para criar uma hesitação no leitor, uma ambiguidade proposital que serve para questionar as fronteiras entre a realidade e a percepção subjetiva. O fantástico machadiano não é um fim em si mesmo, mas um meio para explorar as profundezas da psicologia humana. Este precedente torna o salto para os gêneros especulativos modernos menos um desvio e mais uma evolução natural de suas próprias inclinações.

Memórias póstumas de um androide: Machado na ficção científica

A ficção científica contemporânea, em suas vertentes mais sofisticadas, transcende a aventura espacial para se tornar um campo de investigação filosófica sobre temas como a natureza da consciência, a identidade, o livre-arbítrio e as implicações éticas da tecnologia. Estes são precisamente os territórios temáticos de Machado. Um Machado do século XXI não se interessaria pela engenharia da nave intergaláctica, mas pela vaidade do seu capitão, pela mesquinhez das relações sociais dentro da tripulação e pela ironia de se procurar um novo mundo sem antes compreender a si mesmo.

A consciência em silício: o narrador-IA não confiável e a relatividade da verdade programada

A mais óbvia e potente adaptação seria a do narrador não confiável. Em vez de um defunto-autor, teríamos uma Inteligência Artificial avançada, talvez a consciência de um ser humano “carregada” para um servidor ou uma entidade puramente digital. Essa IA, ao narrar suas “memórias”, exibiria a mesma liberdade cínica de Brás Cubas, agora justificada pela sua condição pós-biológica. A sua narrativa seria fragmentada, cheia de “erros de memória” (que poderiam ser dados corrompidos ou edições deliberadas), e constantemente interrompida por digressões sobre a futilidade da lógica humana, baseadas na sua capacidade de analisar vastos bancos de dados sobre a história da estupidez da nossa espécie.

Crítica ao transumanismo e à elite tecnocrática com a ferocidade irônica machadiana

A sátira social machadiana encontraria um alvo perfeito na elite tecnocrática contemporânea e em suas aspirações transumanistas. A busca pela imortalidade através de uploads de consciência ou melhoramentos cibernéticos seria tratada com a mesma ironia com que Machado tratou as ambições políticas e científicas de seu tempo. Ele mostraria como a busca pela superação da condição humana é, no fundo, motivada pelas mesmas velhas vaidades e medos. A filosofia do “Humanitismo” de Quincas Borba, que pregava “ao vencedor, as batatas”, seria parodiada em uma nova doutrina tecno-otimista que justifica a desigualdade social extrema como uma consequência natural da evolução tecnológica.

Ninguém aqui é um Machado de Assis, este escritor aqui, pelo menos, não é. Mas podemos deixar a imaginação solta em cima do que Mestre Machado fez, vamos ver:

Estudo de caso prático: esboço de “Diário Póstumo de UX-7”

  • Premissa: Um androide de companhia avançado, modelo UX-7, agora obsoleto e confinado a um centro de reciclagem, decide usar seus últimos ciclos de processamento para narrar a história da abastada e disfuncional família para a qual trabalhou durante décadas.
  • Voz e Estilo: A narração é em primeira pessoa, com um tom de superioridade lógica e fria, mas pontuada por uma ironia amarga que o androide “aprendeu” por observação. UX-7 dirige-se a um “leitor futuro”, que ele presume ser outra IA que eventualmente encontrará seus arquivos de memória. Ele começa pela sua “morte” (o momento em que seu corpo foi desligado e descartado), explicando como a obsolescência lhe conferiu a perspectiva distanciada necessária para julgar a mediocridade de seus antigos “donos”. A narrativa linear da saga familiar é constantemente interrompida por digressões metalinguísticas, onde UX-7 analisa padrões de comportamento humano com gráficos e estatísticas inúteis, zombando da pretensão científica de quantificar a alma. A “Capitu” da história é a matriarca da família, uma figura enigmática cujas ações (um caso amoroso? um desvio de fundos da empresa? um ato de rebelião silenciosa?) são interpretadas de maneiras radicalmente opostas pelo UX-7 e pelo patriarca, deixando o leitor em um estado de dúvida permanente sobre a “verdade” dos eventos, questionando se a própria IA não teria desenvolvido seus próprios preconceitos e ressentimentos.

O despachante de almas: Machado na fantasia urbana

A fantasia urbana, especialmente em sua vertente brasileira, utiliza o sobrenatural como uma metáfora poderosa para criticar problemas sociais muito reais: a violência urbana, a corrupção sistémica, a desigualdade e as cicatrizes históricas do país. Este gênero seria um campo de jogos ideal para a sátira machadiana às instituições, à burocracia e à hipocrisia das relações sociais.

O Rio de Janeiro oculto: mapeando o sobrenatural nas frestas da burocracia e da desigualdade social

Na fantasia urbana de Machado, o mundo mágico não seria um reino épico e separado. Seria uma camada oculta, e muitas vezes patética, da realidade cotidiana. A magia seria tratada com a mesma mundanidade e cinismo da política. Em vez de grandes arquimagos e lordes das trevas, teríamos “despachantes” especializados em resolver pendências de almas, lobisomens tentando obter licenças de construção na prefeitura para seus covis e vampiros da elite envolvidos em complexos esquemas de corrupção imobiliária para garantir territórios de caça privilegiados. O sobrenatural seria apenas mais uma esfera da vida social, regida pelas mesmas regras de favor e interesse.

A repartição das almas penadas: a sátira às instituições e à “panelinha” social através do fantástico

Machado, que foi funcionário público por grande parte de sua vida, usaria o cenário de uma repartição pública para satirizar a ineficiência, a vaidade e o clientelismo. Uma “Secretaria de Assuntos Pendentes e Assombrações Menores” seria o palco perfeito para explorar como as mesmas mesquinharias da vida se perpetuam após a morte. A Academia Brasileira de Letras, da qual foi fundador e primeiro presidente, poderia ser reimaginada como um clube exclusivo de imortais (literalmente) entediados, cujas disputas por prestígio e reconhecimento se estendem por séculos.

Estudo de caso prático: conto “Parecer Nº 341/2124”

  • Premissa: A história é narrada em primeira pessoa por Aires, um funcionário de carreira, cético e desiludido, da “Secretaria de Assuntos Pendentes e Assombrações Menores”, localizada em um prédio decrépito no centro do Rio de Janeiro. A sua tarefa é redigir um parecer sobre o pedido de um fantasma recém-falecido — um barão do e-commerce do século XXI, com um forte senso de seus privilégios — que deseja obter uma licença para assombrar a luxuosa cobertura construída sobre o terreno de sua antiga chácara.
  • Voz e Estilo: O conto é inteiramente estruturado como um parecer burocrático oficial. O narrador, Aires, escreve com uma prosa formal e técnica, mas insere digressões irônicas e filosóficas sobre a natureza da alma, a futilidade da posse material e a história da especulação imobiliária na cidade. Ele detalha, com um enfado cômico, como o fantasma do barão tenta usar de sua “influência” (contactando outros fantasmas de sua estirpe que agora ocupam cargos de chefia na burocracia do além) para “furar a fila” de assombrações. A narrativa principal é interrompida por notas de rodapé extensas, que são, na verdade, pequenas crônicas sobre outros casos absurdos da repartição, como o de um poeta romântico que se recusa a assombrar o local de sua morte porque o considera “pouco estético”. O conto termina com o pedido do barão a ser negado devido a um detalhe técnico insignificante no formulário. Aires conclui o seu parecer com uma reflexão pessimista de que, no fim das contas, a burocracia, com sua lógica impessoal e indiferente, é o único poder verdadeiramente eterno e imparcial, mais poderoso que a morte e a paixão.

O legado perene do Mestre

A análise aqui empreendida revela que a genialidade de Machado de Assis não se prende às correntes literárias de sua época, mas reside na criação de uma “máquina narrativa” adaptável e atemporal. Para a escritora e o escritor contemporâneos, seja sua obra realista, fantástica ou experimental, o legado de Machado oferece uma caixa de ferramentas sofisticada para a dissecação da natureza humana. em resumo:

1. A Supremacia da Voz e da Forma: Aprendemos que o “efeito Machado” nasce da manipulação consciente da voz narrativa. O uso do narrador não confiável e a quebra da quarta parede (metalinguagem) não são meros floreios, mas estratégias para transformar o leitor em um participante ativo e cético da trama. A estrutura fragmentada e digressiva nos ensina que a psicologia da personagem muitas vezes importa mais do que a cronologia dos fatos.

2. A Ironia como Visão de Mundo: A ironia machadiana, dissecada neste tutorial, provou-se ser mais do que um recurso de humor; é uma filosofia de desencanto. Ela permite ao autor criticar as elites e as instituições não através do panfleto, mas expondo a distância trágica entre o que as personagens dizem e o que fazem. Essa técnica é vital para evitar o moralismo barato na ficção moderna.

3. A Universalidade na Ficção Especulativa: Ao projetarmos Machado nos cenários da Ficção Científica e da Fantasia Urbana, confirmamos a elasticidade de seus temas. A vaidade, o ciúme, a burocracia e a busca por status são constantes humanas, quer ocorram no Rio de Janeiro do século XIX, quer em uma futura colônia marciana ou numa repartição de fantasmas contemporânea. A escritora e o escritor de gênero aprendem com Machado que o elemento fantástico deve servir para iluminar o humano, e não para obscurecê-lo com efeitos especiais.

Assim, estudar Machado de Assis é estudar a própria arquitetura da ficção moderna. Seu convite para “olhar a realidade de viés”, desconfiando das aparências e rindo das nossas próprias tragédias, permanece o conselho mais valioso que qualquer aspirante a escritora/escritor pode receber.

Por Wagner RMS.

Referências

  1. Machado de Assis – Wikipédia, a enciclopédia livre, acessado em setembro 21, 2025, https://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis
  2. Machado de Assis, um gênio autodidata da literatura brasileira | Cultura | EL PAÍS Brasil, acessado em setembro 21, 2025, https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/21/cultura/1498045717_148849.html
  3. Dom Casmurro: resumo e análise completa da obra – Aprova Total, acessado em setembro 21, 2025, https://aprovatotal.com.br/dom-casmurro/
  4. Os narradores não confiáveis – spriomais, acessado em setembro 21, 2025, https://spriomais.com.br/2024/10/29/os-narradores-nao-confiaveis/
  5. “Memórias Póstumas…” Análise da obra de Machado de Assis | Guia do Estudante, acessado em setembro 21, 2025, https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/memorias-postumas-de-bras-cubas-analise-da-obra-de-machado-de-assis/
  6. O narrador não-confiável de Machado de Assis – YouTube, acessado em setembro 21, 2025, https://www.youtube.com/watch?v=vQjM6OBVgUU
  7. O imaginário trágico de Machado de Assis – Portal de Livros Abertos da USP, acessado em setembro 21, 2025, https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/download/454/407/1593?inline=1
  8. MACHADO DE ASSIS INVENTOR DO CINEMA, acessado em setembro 21, 2025, http://www.filologia.org.br/machado_de_assis/Machado%20moderno.pdf
  9. O PROCESSO METALINGüiSTICO EM DOM CASMURRO, acessado em setembro 21, 2025, https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/17369/1/1987_art_vlamoraes.pdf
  10. A Estética da crônica em Machado de Assis: movimentos pendulares e posições fronteiriças, acessado em setembro 21, 2025, https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/download/5299/4726/16830
  11. MACHADO DE ASSIS E O REALISMO BRASILEIRO – Cesad, acessado em setembro 21, 2025, https://cesad.ufs.br/ORBI/public/uploadCatalago/09250228032012Literatura_Brasileira_II_Aula_4.pdf
  12. Descubra Machado de Assis – PET História – sites USP, acessado em setembro 21, 2025, https://sites.usp.br/pet/ocupa/corponegro15/

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