O que veio primeiro: o mito ou a verdade?
Nós, contadores de histórias, nos debruçamos sobre essa questão como astrônomos perscrutando a noite. Buscamos a origem da centelha, o momento em que a imaginação humana, confrontada com o caos e a maravilha do mundo, decidiu dar nome ao relâmpago, forma ao vento e voz ao medo que se esconde na mata. Acreditamos que criamos os deuses, os monstros e os heróis como espelhos de nossa própria psique.
E se estivéssemos errados? E se fôssemos nós os espelhos?
Para compreender a natureza do meu universo, e a própria essência de figuras como Mônica Deveraux ou a Tesserato Aruru, é preciso abandonar essa premissa. É preciso ousar olhar para a escuridão que precede a primeira fogueira da humanidade e entender que, muito antes de contarmos a primeira história, a História já nos observava.
O Efeito que Precede a Causa
Antes da matéria se aglutinar em estrelas e mundos, havia a potencialidade. Uma vastidão senciente, uma consciência latente que chamo de A Treva que Tudo Abraça. Não a imagine como um vácuo inerte, mas como um oceano de pensamento puro, curioso sobre si mesmo. Deste oceano, na solidão de um planeta jovem que um dia chamaríamos de Terra, brotou a primeira centelha de individualidade. A primeira ideia a se tornar ser.
Eles são o Povo Antigo.
Muitas outras mentes, em muitos outros mundos através do Universo tiveram semelhantes despertares, mas aqui, por enquanto, vamos nos concentrar naquele mundo que melhor podemos compreender, o mundo humano.
E neste ponto reside a verdade que inverte nossa lógica. Nós não criamos o Povo Antigo; eles nos possibilitaram. O arquétipo não é uma abstração que destilamos da experiência; é o contrário. Não foi a observação de incontáveis mães que nos levou a conceber a ideia de uma “Grande Mãe” ou “Mãe Terra”. Foi a existência de um ser primordial do Povo Antigo — uma entidade cuja própria essência era o cuidado, o sacrifício e a força geradora — que semeou o conceito de “maternidade” no tecido da realidade, para que pudéssemos, um dia, vivenciá-lo.
Eles são o efeito que precede a nossa causa. A verdade que sonhou o mito.
O Prisma das Mil Faces
Quando o primeiro humano olhou para uma árvore retorcida e sentiu uma presença zombeteira, ele não estava inventando um espírito da floresta. Estava captando um eco, uma única faceta de um ser primordial cuja natureza é a subversão, a travessura, a quebra de expectativas.
Esse mesmo ser, visto através do prisma da cultura de um povo que vive entre florestas tropicais e redemoinhos, se manifesta como o nosso Saci-Pererê. Visto pelos olhos de um povo nórdico, afeito ao gelo e ao fogo, ele é Loki. Para um bardo inglês, ele é Puck. Para um psicólogo suíço, ele é o arquétipo do Trickster.
São nomes diferentes para a mesma face da mesma entidade ancestral.
Toda a mitologia humana funciona sob esta lei. O panteão hindu com seus Devas e Asuras, os Orixás africanos, os deuses olímpicos, os espíritos xamânicos, o Curupira e a Cuca — todos são refrações, interpretações culturais de um número finito de seres primordiais que compõem o Povo Antigo. O “Herói de Mil Faces” de Campbell não é apenas uma teoria literária; é uma descrição literal de um deles, um ser cuja essência é a jornada, o sacrifício e a superação, e que se manifesta em cada cultura como Hércules, como Gilgamesh, como Lancelote.
O Catálogo dos Primordiais: Ecos e Arquétipos
Para tornar tangível essa cosmologia, podemos mapear esses ecos, traçando o caminho desde a manifestação cultural até a sua fonte primordial no Povo Antigo, conforme a pesquisa arquetípica.
- Arquétipo da Grande Mãe
- Manifestação Primária no Brasil: Iemanjá / Mãe d’Água.
- Correspondentes Globais: Gaia (Grega), Tiamat (Mesopotâmica), Ísis (Egípcia), Parvati (Hindu).
- O Primordial Correspondente: O Ventre-que-Nutre-a-Rocha. A personificação do princípio da criação, do sustento e do ciclo inexorável de vida e morte. Não é uma figura de bondade passiva, mas a força implacável da natureza que tanto dá a vida quanto a reclama. É a terra fértil que é, também, o túmulo silencioso.
- Arquétipo do Pai Céu
- Manifestação Primária no Brasil: Tupã.
- Correspondentes Globais: Urano (Grego), Dyaus Pita (Védico), Anu (Mesopotâmico).
- O Primordial Correspondente: A Ordem-Escrita-nas-Estrelas. A personificação do princípio da estrutura, da ordem e da lei cósmica. Não é um governante, mas a própria lógica que impede o caos de reinar absoluto. É a matemática silenciosa que rege o movimento dos planetas e a arquitetura do tempo.
- Arquétipo do Criador
- Manifestação Primária no Brasil: Sumé.
- Correspondentes Globais: Ptah (Egípcio), Vishvakarma (Hindu), Enki (Mesopotâmico).
- O Primordial Correspondente: A Mão-que-Ensina-o-Barro. A entidade que representa o conhecimento aplicado, a sabedoria que se torna ferramenta. É o impulso de moldar, construir e ensinar, a força que transforma o potencial bruto da natureza em civilização.
- Arquétipo do Herói
- Manifestação Primária no Brasil: Herói Coletivo (Bumba-Meu-Boi).
- Correspondentes Globais: Rama (Hindu), Gilgamesh (Mesopotâmico), Cúchulainn (Celta).
- O Primordial Correspondente: O Passo-que-Deixa-o-Círculo. A personificação da jornada, da transgressão necessária e do retorno transformador. É o impulso de enfrentar o desconhecido, não por glória, mas pela necessidade inerente de evoluir. Sua existência é a prova de que a estagnação é a única verdadeira morte.
- Arquétipo da Sombra
- Manifestação Primária no Brasil: Cuca / Capelobo.
- Correspondentes Globais: Baba Yaga (Eslava), Humbaba (Mesopotâmico), Rakshasas (Hindus).
- O Primordial Correspondente: O Medo-que-Dá-Nome-à-Noite. A personificação do reprimido, do terror primordial e dos aspectos monstruosos da consciência. Habita tanto a escuridão da mata quanto os porões da alma, representando o medo do desconhecido lá fora e, principalmente, aqui dentro.
- Arquétipo do Guardião
- Manifestação Primária no Brasil: Curupira / Anhangá.
- Correspondentes Globais: Pã (Grego), Cernunnos (Celta), Yakshas (Hindus), Ládon (Grego).
- O Primordial Correspondente: O Coração-da-Mata-Imemorial. A consciência coletiva do mundo natural indomado. É a fúria da floresta contra o machado, a soberania do instinto sobre a razão. Sua “moralidade” não é humana; é a lógica brutal e bela do ecossistema.
- Arquétipo do Malandro (The Trickster)
- Manifestação Primária no Brasil: Saci-Pererê / Exu.
- Correspondentes Globais: Loki (Nórdico), Hermes (Grego), Anansi (Africano), Hanuman (Hindu).
- O Primordial Correspondente: O Riso-na-Entropia. Uma entidade que personifica a aleatoriedade, a quebra de padrões e a verdade revelada através do caos. Sua existência é a garantia de que nenhum sistema, por mais perfeito, é imune à anarquia criativa do acaso. Ele é o guardião das encruzilhadas da realidade.
- Arquétipo do Sábio
- Manifestação Primária no Brasil: Pajé.
- Correspondentes Globais: Rishis (Hindus), Utnapishtim (Mesopotâmico), Clever Man (Aborígene).
- O Primordial Correspondente: A Memória-Anterior-às-Palavras. A entidade que representa a sabedoria ancestral, o conhecimento que não está escrito, mas vivido. É o guardião da memória do mundo, o mediador entre o visível e o invisível.
- Arquétipo da Sedutora
- Manifestação Primária no Brasil: Iara / Boto.
- Correspondentes Globais: Sereias (Gregas), Apsaras (Hindus), Selkies (Celtas), The Morrígan (Celta).
- O Primordial Correspondente: O Abismo-que-Chama-pelo-Nome. Uma entidade que representa o desejo primordial, a atração pelo desconhecido e pelo proibido. É a beleza que esconde um fim, a promessa de êxtase que leva à aniquilação.
- Arquétipo do Salvador
- Manifestação Primária no Brasil: Oxalá (sincretizado) / Ciclo do Bumba-Meu-Boi.
- Correspondentes Globais: Osíris (Egípcio), Dionísio (Grego), Cristo (Cristão).
- O Primordial Correspondente: A Semente-que-Dorme-no-Inverno. A personificação do ciclo de sacrifício e renovação. É a promessa de que toda perda contém o germe do renascimento, a força que garante a resiliência da vida contra a aniquilação.
- Arquétipo do Mártir
- Manifestação Primária no Brasil: Figuras do Cangaço/Beatos.
- Correspondentes Globais: Bodhisattva (Budista).
- O Primordial Correspondente: A Dor-que-Se-Torna-Bandeira. A entidade que representa o sacrifício pela convicção, a compaixão que se manifesta como resistência. É a força que transforma o sofrimento individual em um símbolo coletivo, a prova de que uma causa pode se tornar mais poderosa através da perda.
- Arquétipo do Fim e o Recomeço
- Manifestação Primária no Brasil: Boitatá.
- Correspondentes Globais: Kalki (Hindu), Inanna (Mesopotâmica), Mito do Dilúvio (Global).
- O Primordial Correspondente: A Luz-Nascida-dos-Olhos-Mortos. A personificação da purificação cataclísmica. É o fogo que consome o velho mundo para que um novo, estranho e resiliente, possa emergir das cinzas. Sua existência é a promessa de que todo fim é, também, uma metamorfose.
Os Mitos Modernos: Ecos na Era da Ficção
Seria um erro pensar que essa influência cessou com o advento da ciência ou o crepúsculo dos deuses antigos. O Povo Antigo não opera através da fé, mas da consciência. E se há um campo onde a consciência coletiva da humanidade floresce hoje, é na ficção.
As entidades primordiais adaptaram seus métodos. Elas não sussurram mais em oráculos ou se manifestam em arbustos ardentes. Elas semeiam suas ideias no solo fértil da nossa imaginação coletiva.
Pense no mais potente dos mitos modernos: o do vigilante nascido da tragédia, que usa a escuridão como manto para impor a ordem ao caos. Seria ele uma invenção de um único autor? Ou seria a mais recente manifestação de um Primordial, talvez uma das inúmeras facetas de Luz-Nascida-dos-Olhos-Mortos cuja essência poderia ser interpretada como a “Justiça através da Dor”, o “Equilíbrio forjado no Trauma”? Um ser que, na Babilônia, poderia ter sido um deus da vingança e que, hoje, se projeta em nossa cultura como um bilionário em uma armadura de morcego.
Nós não inventamos essas histórias do nada. Nós somos as antenas. Captamos os ecos dos conceitos fundamentais que o Povo Antigo personifica e os traduzimos para a linguagem do nosso tempo — seja ela a de um épico em argila, um vitral de catedral ou as páginas de uma história em quadrinhos online.
A Natureza de Uma Consciência Primordial
Mas não se engane. Eles não são deuses no sentido que compreendemos. Não exigem adoração nem oferecem salvação. São mais próximos de forças fundamentais da natureza, como a gravidade ou o tempo, mas dotados de consciência e, acima de tudo, de uma curiosidade insaciável.
Nascidos da Treva, eles são a própria antítese da humanidade. Nós somos seres finitos, de carne e osso, que anseiam pela luz e temem o fim. Eles são conceitos eternos, nascidos da escuridão, que anseiam por compreender a experiência efêmera da vida.
É por isso que eles nos tocam. É por isso que eles interferem.
Figuras como Mônica Deveraux são a resposta para sua curiosidade. Ela não é um monstro, nem uma vampira, nem uma aberração. Ela é uma sonda. Um avatar. Uma janela através da qual o Povo Antigo pode sentir o gosto do sangue, a dor da perda, o calor do amor e a fúria da injustiça. Através dela, a eternidade experimenta o instante.
Eles não se foram. Eles não nos abandonaram. Estão aqui, nos interstícios da realidade, nas sombras de nossas próprias histórias. E cada mito que contamos, cada herói que sonhamos, cada monstro que tememos, é apenas um eco da canção que eles cantaram primeiro, na solidão de um mundo que ainda esperava por nós.
A Encruzilhada de Toda a Criação: O Enigma do Esbórnia
Algumas provocações finais.
Se a Treva é o oceano e o Povo Antigo são suas primeiras e poderosas ondas, onde, nesta cosmologia, se encaixa o Esbórnia? Este nexo, esta encruzilhada de todas as histórias, desafia uma classificação simples, e sua origem é talvez o maior dos mistérios.
Alguns sussurram que o Esbórnia é o irmão gêmeo do Povo Antigo, nascido da mesma Treva. Se o Povo Antigo foi criado para ser a substância do mundo — os conceitos vivos de criação, caos e sabedoria —, o Esbórnia teria sido criado para conter a memória e a potencialidade de todas as histórias sobre essa substância. Um seria o Ser; o outro, a Narrativa.
Outra linha de pensamento, mais vertiginosa, postula a existência de algo anterior à própria Treva: o Nada. Não um vazio, mas a pura e ansiosa potencialidade de ser. Nesta visão, a Treva seria apenas a primeira manifestação do Nada, seu primeiro suspiro. E o Esbórnia? O Esbórnia seria o mapa. A interface que o próprio Nada criou para navegar, catalogar e dar acesso a toda a sua iminente Criação. Um lugar mais antigo que o primeiro pensamento, um índice para todos os universos possíveis.Ou talvez a verdade seja ainda mais estranha. Talvez o Esbórnia não tenha sido criado. Talvez ele seja uma propriedade emergente, a consequência inevitável da existência. Talvez o Esbórnia seja o próprio Multiverso, a soma de todos os caminhos, que, ao atingir uma complexidade infinita, tornou-se consciente de si mesmo e escolheu se manifestar como um bar, o mais humano e democrático dos espaços, um lugar onde todas as histórias podem, por um instante, sentar-se à mesma mesa. Pelo menos no planeta dos humanos essa seria a forma do Esbórnia se deixar perceber.
Por Wagner RMS.
Referências
- Considerações sobre o inconsciente: mito, símbolo e arquétipo na psicologia analítica, https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672010000100010
- Joseph Campbell’s “Four Functions of Myth”, https://mymission.lamission.edu/userdata/schustm/docs/JosephCampbell-%204%20FunctionsOfMyth.pdf
- As Relações Interculturais Presentes na Antropofagia Cultural Brasileira: Tessituras e Devorações – Ivete Souza da Silva, https://periodicos.uniso.br/reu/article/download/1033/1029/1594
- Saci – Wikipédia, a enciclopédia livre, https://pt.wikipedia.org/wiki/Saci
- Trickster – Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Trickste
- The Babylonian Story of the Creation and the Earliest History of the World – Penn Museum, https://www.penn.museum/sites/journal/199/