1969. O asfalto da BR-101, a artéria que pulsava para fora do coração do Rio em direção ao sol nascente e ao sal do mar, era uma serpente negra e infinita sob a noite sem estrelas. Uma cicatriz de piche devorando os quilômetros que Mônica, de carona em carona, colocava entre si e o horror que viveu ao ser torturada pelos agentes do governo. Homens que ela, depois, matou. A paranoia a estava sufocando, sentia que vinham atrás dela. Cada par de faróis que rasgava a escuridão no sentido contrário era o olhar de um predador, um fantasma do DOPS, um espectro do regime vindo reclamar sua alma. O medo era uma coisa física, um gosto de fel e ferrugem na boca, o suor frio que escorria por sua espinha como um inseto gelado. Mas havia algo incomensuravelmente pior que o medo. Havia a fome.
Não era a fome da barriga vazia, a memória distante da menina pobre que contava os trocados que o pai lhe dava, para comprar pão e mortadela na vendinha, enquanto ela e os irmãos caminhavam quilômetros para ir à escola. Era uma fome nova, uma presença escura e sinuosa que se aninhara em seu âmago, no mesmo lugar onde antes lhe existia a alma. A coisa se contorcia dentro dela, uma entidade senciente sussurrando promessas de poder em troca de sangue, de alívio em troca de violência. Era a Besta. E a Besta queria caçar e dançar.
Mônica fugia dos torturadores, sim. Seus rostos sem nome, suas mãos imundas, suas perguntas que ecoavam no silêncio de sua mente fraturada. Mas, acima de tudo, fugia de si mesma. Voltar para a Serra do Mendanha, para o cheiro doce de terra molhada e o som da sanfona triste de seu pai, Severino, era uma fantasia cruel. Seria levar o inferno para o único paraíso que conhecera, seria soltar o lobo no meio das ovelhas.
Na última carona que conseguiu, perto de Rio Bonito, um homem em um terno e um carro caros achou que Mônica estava se prostituindo. Ele ainda devia estar correndo apavorado, noite adentro. Quando ele parou em um acostamento e tentou tocar nela, Mônica arrancou a porta do carro e deu com ela no moço até ele fugir aos gritos. Por muito pouco Mônica não o perseguiu, caçou e despedaçou.
Depois disso, ela preferiu deixar a noite passar para pedir nova carona. A moça caminhou por horas, mas não sentia cansaço, não ainda. Sentia tristeza, medo de ferir as pessoas, e uma opressão no peito, por conta dos sussurros que ouvia na escuridão da estrada. Toda a Treva, especialmente nas matas que cercavam o asfalto, queria saudar a Filha da Escuridão e lhe contar suas loucuras e pequenos terrores. Mônica precisava de alguma luz.
Foi em um posto de gasolina esquecido pelo tempo, uma ilha de luz amarelada zumbindo sobre bombas de combustível corroídas, que a providência tomou a forma de um caminhão FNM antigo, da cor de um céu de fim de tarde. O motorista, um homem de pele curtida pelo sol do norte e olhos que guardavam a sabedoria mansa dos anos, a viu encolhida perto de uma borracharia, sentada sobre um velho pneu, um animal acuado tentando se tornar invisível.
Mônica estava com a aparência de uma bela jovem comum, pois havia conseguido roubar umas roupas antes de chegar ali, e não usava mais os trapos rasgados e sujos de sangue com os quais fugiu dos porões da tortura. Mas ela parecia também o mais pesaroso e solitário ser humano do mundo.
O velho motorista se aproximou, e não fez as perguntas que a teriam feito correr. Apenas ofereceu um prato de feijão tropeiro e sua companhia. Comeram em silêncio por um tempo, Mônica percebendo, então, o quanto seu estômago de gente, não de fera, estava faminto.
— Você está bem? Para onde vai, menina? — ele perguntou, a voz mansa como um rio perene, cheia de sotaque e sem a aspereza curiosa do mundo dos homens rudes. Aquele senhor tinha cheiro de gente simples e boa.
— Para longe. — A palavra saiu arranhada, um som que ela mal reconheceu como seu.
Ele sorriu, um sulco de bondade genuína em seu rosto.
— Longe é um bom lugar. Conheço muitos.
Ela pediu e o velho motorista generoso lhe deu carona. Conversador, logo Mônica soube que o nome dele era Valdemar e, nas horas de solidão da estrada, ele não ouvia rádio. Ele compunha versos na mente, alinhavando rimas para sua literatura de cordel. Falava de Lampião, de padres e de reinos encantados com a mesma naturalidade com que falava do preço do diesel.
— Nunca li cordel. — Disse, baixinho, a moça.
— E livro de outro tipo? Já leu Suassuna? Minha velha mãe, antes de falecer, me deu de herança a vontade de ler. Tem que ler o Auto da Compadecida, viu.
— Eu li. Muito bom.
— Ah, quem bom! — novamente o sorriso generoso.
Havia nele uma calma que lembrava à Mônica a presença de seu pai, e pela primeira vez em dias que pareciam séculos, a Besta se aquietou, observando com uma curiosidade contida.
Valdemar contou que vinha de Pernambuco e levava uma carga de mangas para um terminal estranho, um desvio da linha férrea principal que poucos conheciam, um segredo sussurrado entre os caminhoneiros mais antigos.
— O trem de lá não leva só carga, não — disse ele, baixando a voz como quem partilha um segredo. — Leva gente também. Para um lugar que os mapas não gostam de mostrar. O povo chama de Ipamoará, a Ilha das Praias Pretas. Dizem que é um lugar que não é bem deste mundo. Que a névoa de lá esconde mais do que revela. Tem gente de todo tipo lá, gente comum e… gente mágica.
Gente mágica. A palavra ressoou em Mônica, não como uma fantasia infantil, mas como uma possibilidade desesperada. Um lugar que não era deste mundo talvez fosse o único lugar para alguém como ela. Uma aberração.
Seu Valdemar a deixou na estação ferroviária e foi descarregar o caminhão, recitando para a moça, ao se despedir:
— Deus lhe guarde, minha filha, de todo mal e perigo, que o seu riso floresça, no calor de um bom abrigo. Até mais ver, criança amada, vai na fé, sempre guiada.
Ela o abraçou e, com relutância, seguiu seu próprio rumo.
O terminal era um fantasma de ferro e diesel, envolto na bruma densa que brotava das florestas no entorno e abafava os sons. O trem, escuro e imponente, roncava em marcha lenta, um som grave e contínuo como a respiração de uma criatura adormecida, sua fumaça azulada se dissipando na névoa. Na bilheteria, um cubículo de madeira escura que cheirava a maresia e tempo, um rapaz uniformizado a atendeu. Era preto, quase um menino, e seus olhos brilhavam com um verde distinto, o verde de folhas novas depois da chuva e sob a luz dourada e castanha do Sol, o verde de um mundo intocado. Fez a moça lembrar um amigo de infância.
— Me desculpe — Mônica disse, a voz quase um sopro, a vergonha queimando em seu rosto. — Eu não tenho como pagar, mas… preciso ir.
O rapaz a encarou por um longo instante, e seu olhar não era de julgamento ou pena, mas de um profundo e antigo reconhecimento. Ele sorriu, um sorriso que não pertencia àquele rosto tão jovem.
— Moça, quem a ilha chama não precisa de passagem.
Ela embarcou. A viagem foi uma travessia por trilhos em pontes suspensas sobre as Ilhotas das Emerências, ou sobre imponentes colunas de concreto e aço que mergulhavam direto na bruma do mar turquesa. Tudo, aliás, era tingido de névoa e silêncio, afora o som das águas e o apito do trem, um lamento solitário do grande animal de metal cortando a quietude. A ilha, enfim, recebeu Mônica com o cheiro de sal, terra úmida e algo mais, algo ancestral. Passando por um porto pequeno, mas agitado, o trem prosseguiu por terras de beleza e encanto, e deixou a jovem fugitiva mais para dentro de Ipamoará, em Tabaitauna, “o maior município da ilha das Praias Pretas”, Mônica leu em uma placa informativa. Era uma cidade movimentada, com algumas construções bem modernas, mas com uma aura de antiguidade em suas construções neoclássicas feitas em pedra, ferro e concreto. Esse ar erudito, por alguma razão, acalmava Mônica.
Mas a paz foi breve. O cheiro infecto dos cães de caça do regime atingiu a moça, os homens cujos rostos Mônica via em seus pesadelos, eram mais persistentes que a memória do trauma, e surgiram na estação de desembarque, provavelmente vieram de barco e estavam atentos a todo trem ou embarcação que chegava. Teriam chegado às Praias Pretas antes dela? Como souberam que ela acabaria indo parar lá? Ela mesma nuca havia ouvido falar de Ipamoará. A moça também não conhecia nenhum daqueles homens, mas se conhecesse, saberia que o pior dos piores havia sido mandado no seu encalço. Liderando a matilha estava o Major Galdino, um homem cuja crueldade era notória, tinha fama de ter feito pacto com o tinhoso, era odiado pelos militares que realmente honravam suas fardas e era um torturador que não buscava apenas informação, mas a desconstrução da alma de suas vítimas, violentar corpos e almas era uma forma de arte para ele.
Mônica os viu antes de ser vista e fugiu, e a fuga a levou pelas vielas de Tabaitauna, a cidade de pedra preta que, em seus lugares mais antigos, parecia ter sido esculpida pela própria noite. Foi uma figura pequena e frágil, vestida com uma batina simples, que a interceptou na penumbra de uma igreja onde a fuga de Mônica a fez se refugiar e pedir auxílio a Jesus, a quem sua mãe Olivia dedicava imensa fé. Mônica reconheceu o senhorzinho dos jornais, das fotos censuradas que ainda circulavam, era Dom Hélder Câmara, o arcebispo cuja voz ecoava como um trovão nos salões do poder e nos porões da tortura. Ela passava entre os bancos da nave da igreja, quando a jovem o viu e foi falar com ele.
— Me ajude, os homens do regime estão vindo por mim.
— Estou nessas paragens justamente para encaminhar os perseguidos em direção a alguma proteção. Esses homens não caçam apenas seu corpo, minha filha. Caçam a esperança que teima em sobreviver em seus olhos — disse Dom Hélder, a voz suave, mas com um peso que parecia capaz de mover montanhas. — Há um lugar… um refúgio para os que se perdem. Não posso prometer total segurança, apenas uma porta. O que há do outro lado, só Deus sabe, mas Ele te guiará.
E Dom Hélder a levou da igreja por algumas ruas estreitas entre prédios altos e, por fim, apontou para uma porta sem nome, ostentando apenas um ouroboros de cobre polido encrustado nela, engolida pela sombra de um beco.
— Ali é o Esbórnia, o nome não é inspirador, mas o lugar sim. Vá, minha jovem, que Jesus nosso Senhor te acompanhe.
— Amém. Obrigada! O senhor? Vai ficar seguro?
— Ninguém está seguro nesses tempos sombrios do nosso Brasil, jovem, mas não se preocupe, vou ficar bem. Vá, vá.
Ela entrou, e o mundo, como ela o conheceu desde seu nascimento, se desfez.
O ar cheirava a madeira antiga, a bebida derramada e a algo mais, algo inclassificável como o pó das primeiras estrelas ou a poeira de livros nunca escritos, mas sonhados. O barulho era um murmúrio baixo e constante, o zumbido de centenas de conversas em línguas que ela não conhecia. O bar era escuro, iluminado por luminárias que lançavam sombras dançantes. Atrás do longo balcão de metal e mogno, um homem polia um copo com uma lentidão cerimonial. Era mulato, de cabelos brancos e crespos, e um bigode espesso que lhe caía sobre os lábios finos. Vestia-se com um rigor anacrônico, e seus olhos, por trás de um pincenê, continham uma melancolia divertida, a resignação de quem já vira todas as comédias e tragédias humanas e descobrira que eram, no fundo, a mesma peça.
Mônica se aproximou, a desconfiança uma segunda pele.
— Um homem… um bispo… me mandou aqui. Dom Hélder.
O homem pousou o copo e a encarou. Seu olhar não penetrava, antes convidava à reflexão.
— Ah, o Dom. Um homem de fé notável. A fé, minha jovem, é a teimosia da alma em acreditar no improvável. Um vício, diriam alguns. Uma virtude, insistem outros. Parte importante da experiência humana, digo eu. Sente-se, se lhe apraz.
— Que lugar é este?
Ele deu um pequeno sorriso, um tremor quase imperceptível em seu bigode.
— O Esbórnia, entre seus muitos outros nomes, senhorita, é menos um lugar e mais uma consequência. Uma biblioteca de histórias que insistem em serem vividas. Algumas são escritas, outras são sonhadas. Algumas, como a sua, são sangradas. A sua criatividade lhe permite ver mais além das prateleiras. E o fato de ser, também, uma criação… bem, isso lhe dá acesso aos corredores mais fundos sem nenhum facilitador. Não fosse isso, ao entrar aqui, veria somente um bar deveras comum.
— Espera. Criação? O que quer dizer com isso?
O Administrador apenas inclinou a cabeça, um gesto vago e elegante.
— As melhores respostas são as perguntas que nos recusamos a abandonar.
Desconfiada, mas estranhamente atraída por aquele mistério, Mônica se afastou do balcão. Ela caminhou para o fundo do salão, uma área coberta por uma névoa leitosa que parecia viva. Através do véu, ela finalmente via as silhuetas de incontáveis patronos. Figuras em armaduras medievais dividiam mesa com cosmonautas soviéticos; mulheres de vestidos vitorianos jogavam cartas com o que parecia ser Iemanjá. Em um canto, a silhueta de um grupo de pessoas se debruçava sobre uma mesa, suas vozes animadas falando de dados e destinos, um jogo que ela sentiu, sem saber por quê, que se chamava RPG. A moça dos poemas, que ainda existia em Mônica, criativa e curiosa, teve vontade de ir lá aprender e jogar com eles.
Mas a porta do Esbórnia se escancarou com a violência do mundo real. Os agentes da ditadura, liderados pelo Major Galdino, irromperam no bar, suas armas e sua certeza de impunidade profanando a atmosfera onírica. Eles a viram, uma sombra no meio das sombras.
— Ali! Peguem-na!
Eles avançaram, ignorando ou talvez não enxergando o cenário impossível ao redor. Ao passarem correndo pelo balcão, o Administrador, sem se virar, comentou para o ar impregnado de fumaça.
— A vida é a soma das suas escolhas, cavalheiros. E no fim da vida, está sempre a morte.
Eles não ouviram, ou não se importaram. Mergulharam na névoa, suas intenções brutais rasgando o tecido do lugar.
O bar era um paradoxo, um nexo de realidades. Mônica corria por um corredor que se transformava sem aviso em uma trincheira da Primeira Guerra, no instante seguinte a moça desviava de mesas de um cabaré dos anos 20, sentia o cheiro de pólvora e perfume barato em um corredor cheio de telas de computadores. Os agentes de Galdino a seguiram, mas o Esbórnia os repelia. Um deles, ao tentar agarrá-la, atravessou uma parede e se viu em um mercado flutuante em Bangkok, levou semanas para conseguir voltar ao Brasil. Outro, com menos sorte, foi engolido por uma tapeçaria que se tornou uma floresta jurássica, este nunca mais foi visto. O bar filtrava a realidade, testando a intenção, expelindo os insensatos. Apenas a vontade obsessiva do Major Galdino e sua criatividade sádica eram fortes o suficiente para manter o rastro da fugitiva.
A perseguição levou Mônica cada vez mais fundo naquele labirinto de possibilidades, até que uma porta de madeira antiga, imensa, toda ornada em entalhes de muitas fontes, culturas e eras, se abriu não para outro cômodo, mas para um belo crepúsculo eterno.
Ela estava no Bosque Oculto.
Árvores de casca prateada se erguiam para um céu roxo onde as estrelas, uma imensa quantidade delas, eram vagalumes pulsantes. O ar era frio e puro, com o perfume de flores que nunca desabrochavam sob o sol, mas sempre no entardecer. Foi ali que a encontrou. Uma anciã indígena, de pele enrugada como a casca das árvores e olhos que continham a faceta da escuridão pacífica do cosmos.
— Você demorou — disse a velha. Sua voz era o farfalhar das folhas outonais.
— Eu… conheço a senhora? — Perguntou Mônica Deveraux, arisca, olhando seu entorno, com medo de um de seus perseguidores saltar do meio das árvores e despertar nela a Besta.
— Sou Iná. Tem gente e tem bicho que me chamam de Guardiã de Tupinara.
Diante da tensão da moça, Iná prosseguiu:
— Um deles vai chegar aqui, ele é ruim, o pior, mas tem o que esse lugar aceita.
Mônica, mesmo finalmente exausta e acuada, se enrijeceu, preparou-se para lutar e disse:
— Vou virar aquela coisa, vai ter sangue e horror. A senhora tem que fugir daqui!
Mas Iná apenas se sentou sobre as raízes de uma árvore imensa que parecia ser o coração do bosque.
— A Treva que a abraçou não é um mal, criança. É apenas curiosa. O Vazio sentiu a necessidade de existir. O nada precisou de um algo. Isso é a natureza, esse algo é você. A Besta que você diz, é o encontro desses dois rios fortes, a Treva e você.
Iná falou por duas horas que pareceram um instante, o tempo era diferente, estranho ali. A velha indígena explicou sobre o Povo Antigo, os primeiros espíritos, também filhos da Treva que Tudo Abraça. Iná falou sobre o equilíbrio. Explicou que Mônica poderia ficar ali, no Bosque, para sempre, se quisesse, a xamã a levaria para os cantos daquele lugar de onde quase ninguém volta. Mônica acreditou entender que poderia se tornar um ser abstrato, seguro da Besta, seguro dos horrores da ditadura e do mundo, mas também seguro da vida, da dor, do amor, do crescimento. Uma alma estagnada em uma paz sem propósito.
A escolha de Mônica, no entanto, foi interrompida. O Major Galdino rompeu o véu do Esbórnia e pisou nas terras do Bosque Oculto. Seu rosto se contorceu num sorriso de triunfo predador ao ver Mônica. Ele não era mais apenas um homem. Ali, e somente ali, no Bosque, sua vontade de dominar e sua maldade o tornavam algo mais, havia um tipo antinatural de Besta nele também, que o dominou por completo.
— Então a cadela tem poderes — ele sibilou, quase animalesco, os olhos brilhando com uma nova fome. — Isso torna a caça muito mais interessante.
A luta foi selvagem. Galdino não atacou como um brutamontes, mas como o militar treinado que era: com uma economia de movimentos letal. Ele avançou em linha reta, o corpo baixo, buscando o centro de gravidade de Mônica para uma derrubada. Seus punhos não eram armas de raiva, mas ferramentas de precisão, visando articulações e pontos de pressão. A Besta nele era forte, absurdamente forte, sua musculatura impulsionada pela energia anômala do Bosque.
Mônica recuou por instinto, mas seu corpo não respondeu com o pânico da presa. Para seu completo assombro, seus pés encontraram um ritmo, um balanço que ela nunca aprendera. A ginga. Ela fluiu para o lado, em uma esquiva aguda e graciosa, a tentativa de agarre de Galdino passando a centímetros de seu rosto. Ele rosnou, surpreso, e desferiu um soco direto, um golpe para quebrar costelas. Mônica se esquivou novamente, para baixo, um movimento líquido, quase uma dança, e sentiu a perna subir por conta própria, um arco perfeito no ar. Uma armada. O calcanhar dela passou zunindo pela orelha do Major, que recuou um passo, os olhos arregalados.
O novo corpo da Filha da Escuridão reagia lutando como se a luta sempre estivesse ali. O corpo de Mônica lembrava de uma sabedoria ancestral, uma dança de guerra que era parte dela. Galdino atacou de novo, uma série de golpes curtos e brutais. Mônica respondeu com uma sucessão de esquivas, seu torso se dobrando em ângulos quase impossíveis, seus braços traçando arcos defensivos. A surpresa inicial deu lugar a uma onda de poder. Ela revidou com uma meia-lua de compasso, a mão espalmada no chão, a perna girando com uma força centrífuga que Galdino só conseguiu bloquear com o antebraço, o impacto fazendo-o grunhir de dor aguda e de surpresa.
Foi nesse instante, no auge daquela descoberta impossível, que Mônica hesitou. Um pensamento, claro como cristal, atravessou sua mente: quem me ensinou isso? A pergunta abriu uma fissura em sua concentração. Um milissegundo de dúvida. Para um predador como Galdino, foi uma eternidade. Ele viu a abertura. Ignorando a dor no braço, ele girou, e seu cotovelo, impulsionado por aquela força sobre-humana, atingiu o lado da cabeça de Mônica com a precisão de um cirurgião. O mundo dela explodiu em luz e dor. Ela caiu, o corpo subitamente pesado e desajeitado, a dança esquecida. Ele a queria viva, um troféu, uma arma para seus generais. Ele a via não como uma pessoa, mas como um recurso a ser explorado.
Foi seu erro. Ao arrastá-la, ele a levou para o coração do Bosque, onde a luz do crepúsculo não chegava, onde a escuridão era absoluta. E na escuridão absoluta, a Treva é Mônica, e Mônica é a Treva.
A Besta despertou. Não era mais a fome sussurrante; era um rugido silencioso que abalava as árvores prateadas. Com uma explosão felina, ela se desvencilhou dele e o atacou. O caçador lutou com a força de um demônio forjado no ódio, mas ela era a Filha da Escuridão primordial. Galdino fez tudo que conseguiu fazer com o grande poder que aquele lugar misterioso lhe deu, mas a cada golpe que dava, sua oponente só fazia crescer em força e fúria, como um maremoto de poder e determinação! Ela, enfim, o derrubou com facilidade.
Suas garras estavam a um centímetro da garganta de Galdino, a promessa de aniquilação um prazer doce e terrível em sua mente. O alívio. A vingança. O fim.
— Agora você fará sua escolha, criança.
Iná estava lá, serena como sempre, sua presença um farol na tempestade, luzindo, calmante, entre ondas escarpadas de fúria da Besta, indicando o caminho para a moça dos livros e poemas.
— Este é o início de sua jornada no mundo. Ou o fim dela no silêncio do Bosque Oculto.
O homem no chão tremia, o terror em seus olhos era a imagem espelhada do terror que Mônica sentiu no porão do DOPS. Matá-lo seria se tornar igual a eles, seria validar a monstruosidade que eles viram nela. Poupá-lo… seria outra coisa. Algo novo. Um ato de criação em meio à destruição. E se aqui dentro esse homem não conseguiu vencer Mônica, lá fora ele não tinha a mínima chance.
Com um esforço que custou cada fibra de sua alma ferida, Mônica recolheu as garras. Ela se levantou, sentindo a Besta recuar para as profundezas, domada por um instante, mas não vencida.
— Eu me rendo. Você podia ter tentado me matar, mas tentou me levar viva. Porque?
— Os generais… querem falar com você. Saber… o quê você é. Te digo, querem um acordo, conheço os velhos. — A voz de Galdino estava rouca, engasgava ainda com os golpes que levou. — Quer viver fugindo? Você não precisa ter medo de ninguém.
Levantando-se com dificuldade, o homem olhou para Mônica e sentiu a compreensão e um temor reverente substituindo o sadismo em seu próprio peito. De pé, esperou por ela, não mais como um caçador, mas como uma escolta.
Ao sair do Bosque, Mônica parou e olhou para trás. Iná ainda estava lá, um sorriso triste e orgulhoso em seus lábios.
— Você precisa descobrir por si mesma que não é um monstro, para isso tem que ir viver entre gentes e monstros de verdade. Mas saiba, o caminho não será fácil. Aqui, onde a vida e a morte dançam juntas, é mais fácil resistir ao ódio. Lá fora, no mundo dos homens… será mais difícil. A Besta sempre terá fome, e os homens sempre lhe darão motivos para alimentá-la.
Mônica assentiu, o corpo dolorido, a alma em carne viva. Altiva, ela se virou para seguir seu captor, para começar a jornada a que estava destinada. A voz de Iná a acompanhou, um eco de sabedoria ancestral e uma promessa de esperança.
— A escolha que você fez hoje, de não matar, não foi uma fraqueza. Foi o primeiro ato de seu verdadeiro poder. O poder de escolher quem você será. Nunca esqueça, Mônica, a vida é maravilhosa, sempre. Mesmo na dor, mesmo na escuridão. Porque é nela que a escolha floresce.
Mônica e Galdino rapidamente foram encontrados pela grande porta entalhada que os trouxe ao Bosque Oculto e, ao cruzá-la, já estavam de volta ao balcão do Esbórnia. Ali, Mônica reencontrou o Administrador de pincenê, no balcão do bar, que sorriu para ela, amistoso, e olhou para o homem ferido que a seguia com visível desprezo.
— Eu vou voltar? Vou rever esta Ilha? Esse lugar-consequência? — quis saber Mônica.
— Dir-se-á que a terra volta a ser o que era, quando torna a estação melhor; a terra, sim, mas as plantas, não. Mônica voltará muitas vezes, sempre que desejar, mas você, não.
Apertaram as mãos e a moça dos poemas foi viver seu destino.
Por Wagner RMS.
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