A Sala Escura

ilustração A Sala Escura

Ki (Introdução)

Aruan não era um homem dado a conspirações, mas o escrutínio kafkiano ao qual a Marinha o submeteu parecia desproporcional à simplicidade da vaga. Ele era apenas um técnico de meia-idade, com mais dívidas do que futuro e um conhecimento obsoleto de sistemas que o mercado já começava a esquecer. Fora indicado por um velho amigo, um empresário com contratos de prestação de serviços com as Forças Armadas, para um trabalho de plantão bem remunerado. Simples assim.

No entanto, os formulários que devassavam sua alma com perguntas sobre suas crenças e filiações, as sabatinas que dissecavam seu conhecimento profissional com uma precisão cirúrgica e os contratos de confidencialidade que o aprisionavam em silêncio antes mesmo de saber o que deveria silenciar, tudo sugeria que a tarefa ia muito além de monitorar computadores em uma base naval em Niterói.

O último passo antes de assumir o posto na base naval foi e decisão final de Aruan, que que ele romou em uma conversa num bar. Não um bar qualquer. Dias antes, remoendo a estranheza do processo, Aruan caminhara sem rumo pelo centro do Rio e acabou entrando em um lugar que nunca viu ali. Uma porta discreta, uma placa de latão gasta com um nome estrangeiro que soava como Tumulto ou Tummo. Lá dentro, o silêncio era denso, quase sólido. Pediu uma cerveja e o bartender, um homem de olhar antigo, que Aruan tinha a vaga impressão de já ter visto em algum lugar, apenas assentiu.

— Decisões importantes? — Quis saber o atendente, servindo a cerveja de Aruan.

— Como descobriu? — Perguntou de volta Aruan, antes do seu primeiro gole.

— Uma eternidade atrás desse balcão. Entender as pessoas é minha maneira de lidar com a monotonia. Faça uma boa escolha.

Foi ali, naquele silêncio denso, que a decisão se solidificou em Aruan. Não era apenas pelo dinheiro, ele compreendeu subitamente. Era pelo estranhamento. Sua vida, ao olhar para trás, parecia uma longa e monótona sucessão de irrelevâncias: empregos esquecíveis, rotinas cinzentas, dias que se repetiam até se fundirem numa mancha indistinta de tédio. Seu destino, ele temia, era morrer não de uma doença, mas da sua própria história de vida. Aquele processo seletivo bizarro era um desvio no roteiro previsível de sua existência. Era um convite para o desconhecido. E, pela primeira vez em anos, Aruan sentiu uma fome voraz de viver algo novo, de ter um último capítulo que valesse a pena ser contado. Ele precisava daquele emprego, não importava o quão estranho fosse, porque a alternativa era a certeza do nada. Quando saiu, caminhou cerca de um quarteirão e se deu conta que talvez, um dia, quisesse voltar àquele bar. Voltou por onde viera, procurou a porta novamente para guardar o endereço, mas ela não estava mais lá… só aquele tanto de cerveja que bebeu tinha sido o suficiente para Aruan perder seu rumo? Impossível. Mas, impossível também foi reencontrar o bar. Estava ficando fraco para bebidas. Mesmo racionalizando assim, a lembrança daquele lugar o assombrava com a nitidez de um sonho real.

Agora, dentro dos muros da base, o Tenente Queiroz o guiava por corredores cinzentos e impessoais. Queiroz era um homem cujo sorriso fácil não alcançava a gravidade que se instalara em seu olhar, uma espécie de cansaço cósmico. Logo atrás dele, seguia seu ajudante de ordens, um sargento jovem e atlético chamado Oliveira, cuja eficiência silenciosa era quase robótica. Ao lado de Aruan, caminhava Anne, sua colega de turno, uma mulher de feições serenas que pareciam esconder uma resiliência forjada em experiências que ele não ousaria perguntar. Ela também passara pelo mesmo rigoroso processo admissional.

Atravessaram três pontos de controle, três portas de aço que se fechavam com a finalidade de um cofre. A última era uma comporta maciça de aço e concreto.

— Bem-vindos ao santuário — disse Queiroz, sua voz ecoando no pequeno vestíbulo.

Ele acionou um painel e a comporta deslizou para o lado, revelando a sala de controle. Era um CPD clássico, impecavelmente limpo, mantido numa temperatura agradável. Anexos havia uma sala de café, com um pequeno sofá, e um banheiro muito limpo e bem equipado. No CPD dezenas de monitores brilhavam com gráficos e colunas de dados em cascata, junto às paredes, computadores de última geração lado a lado com mainframes muito antigos. Mas não eram os computadores que prendiam a atenção. Era a parede de vidro à frente, um vidro espesso e escurecido que dava para o negrume absoluto.

— Aquela — Queiroz apontou com o queixo — é a Sala Escura.

Não era uma sala. Era um abismo contido, um fragmento de vácuo interestelar aprisionado. Mas não era vazio. Aruan podia sentir. O ar do outro lado do vidro parecia sugar a própria luz, uma escuridão que não era ausência, mas substância. Uma névoa preta, densa como óleo, flutuava sem peso, um organismo vivo e amorfo, um oceano pensante de noite eterna que o sol do Rio de Janeiro jamais tocaria.

Shō (Desenvolvimento)

Os primeiros plantões foram um exercício de monotonia e tensão contida. O trabalho de Aruan e Anne era simples: observar. Observar os dados que fluíam dos sensores da Sala Escura. Temperatura, pressão, radiação de fundo, composição atmosférica. Os manuais, grossos e repletos de jargão técnico, explicavam os parâmetros de normalidade. Qualquer desvio, qualquer alerta vermelho, e a instrução era clara: usar o telefone de linha direta e relatar. Apenas isso. Não interpretar. Não agir. Relatar.

— Supercondutores — Queiroz havia explicado no primeiro dia, respondendo a uma pergunta de Anne sobre o frio criogênico que os monitores indicavam existir lá dentro. — Mantemos protótipos de novos materiais em temperaturas próximas do zero absoluto. Qualquer flutuação pode comprometer décadas de pesquisa.

Aruan assentiu, mas a verdade já começava a florescer em seu íntimo, fria e silenciosa como a própria sala: não estavam tentando impedir o frio de sair; estavam tentando impedir a escuridão de aprender. A presença daquela treva viva, daquele oceano negro, pesava no ar, uma consciência alienígena adormecida do outro lado do vidro.

O sonho veio algumas semanas depois, uma intrusão vívida na realidade estéril da sala de controle. Na segurança de sua própria cama, Aruan sonhou que estava de volta à base. Mas desta vez, uma compulsão o guiava. Contra todas as normas, contra o instinto de autopreservação, ele abriu a comporta estanque e adentrou a escuridão. Do outro lado da comporta, uma escada com corrimão, simples, de metal, ele desceu por ela. Atrás de si a luz vinda da sala de observação enfraquecia, à frente… o nada. O frio abissal o envolveu, uma ausência de calor tão profunda que deveria ter congelado seus pulmões, mas ele não sentia dor, não morria. A escuridão respirava com ele, e ele sentiu que ela lia seus pensamentos, vasculhava suas memórias mais profundas.

Primeiro, ela tomou formas. Geometrias mutantes, caleidoscópicas, dançavam à sua volta, alucinações sombrias e coleantes que se entrelaçavam e se desfaziam. Eram manifestações de suas ansiedades, medos que ele mal admitia para si mesmo. Depois, as formas se uniram, ganhando contornos familiares, arrancados de histórias que sua avó contava, do folclore que habitava o subconsciente de sua infância. Um vulto de mulher com cabelos longos e pés virados para trás espreitava entre sombras que pareciam árvores; uma serpente de fogo deslizava pelo negrume sem queimar; um garoto de uma perna só, com um gorro vermelho-escuro como sangue coagulado, o observava de um canto, apoiado em nada. Os seres o cercaram, uma roda silenciosa de mitos nascidos da noite, uma tentativa enigmática da treva de se comunicar usando o léxico de sua própria mente.

Do centro da escuridão, ela surgiu. Uma cópia de Anne, moldada na mesma treva que compunha as outras criaturas. Estava nua, a pele um vácuo que absorvia a pouca luz que a mente de Aruan conseguia projetar. Ele então percebeu que também estava nu, exposto. A Anne sombria se aproximou, e o ar crepitou com uma tensão que era ao mesmo tempo aterrorizante e erótica. Seus olhos, vazios de estrelas, examinaram seu corpo, não com curiosidade, mas com o escrutínio de um biólogo analisando uma nova espécie. Ela ergueu a mão, os dedos de fumaça traçando o contorno de seu rosto, e o beijou. O beijo não tinha calor, apenas a promessa do frio eterno.

Aruan despertou com o coração martelando. De volta ao trabalho, sob a luz fria dos monitores, ele notou que Anne o observava por cima de sua caneca de café, um olhar enigmático que ele nunca vira antes. Foi apenas um instante, e logo ela voltou sua atenção para a tela, mas a imagem de sua sósia sombria se sobrepôs à sua figura real, e Aruan sentiu um calafrio que nada tinha a ver com a temperatura da sala. A presença da treva não estava mais contida do outro lado do vidro; ela havia se infiltrado em sua psique, causando uma paranoia sutil que começava a borrar as bordas de sua realidade.

Foi nesse estado de espírito perturbado que Aruan ouviu de Anne que ela encontrou logs escondidos nas profundezas do sistema. Lá, havia um arquivo de texto não documentado, deixado pelo operador anterior. Eram notas fragmentadas, quase um diário.

Dia 47: Flutuação no sensor gama. Mínima. Dentro da tolerância. Mas o padrão… não é aleatório. Parece… responsivo. Respondeu a uma memória minha. Tenho certeza.

Dia 62: Tive um sonho com a sala. Não havia nada lá, só o escuro. Mas o escuro me via. Acordei suando frio. Queiroz disse que é o estresse do isolamento.

Dia 81: Aconteceu de novo. A mesma flutuação gama, mas desta vez coincidiu com a queda de energia no setor B. Como se… tivesse notado. Ou testado.

Dia 95: Não é um experimento. É um prisioneiro. Ou um deus. Ou ambos. Eles não sabem o que têm aqui. Ninguém sabe. Tentar se comunicar é como gritar para uma montanha e esperar que ela responda com um poema. Sua inteligência é de outra ordem.

O último registro era de três dias antes de Aruan começar. Anne esperou a reação dele, depois de ler todo o log. O rosto dela impassível, mas seus dedos tamborilavam levemente sobre a mesa. O sonho de Aruan, somado ao diário do antigo operador, mudava tudo, mas falar sobre sua colega de trabalho erotizada em seus devaneios oníricos era constrangedor para ele, que preferiu se calar e ficar apenas olhando para Anne. Haveria uma explicação razoável para tudo aquilo?

— Estresse do isolamento — Anne disse após um tempo, ecoando a desculpa de Queiroz e a pergunta não dita de Aruan, mas seus olhos diziam o contrário. — Ou não… eu não ficaria surpresa.

A partir daquele dia, a observação deles mudou. Deixou de ser passiva. Tornou-se uma obsessão. Eles começaram a procurar padrões, a cruzar dados. Anne, com sua mente metódica, criou uma planilha paralela, registrando as microanomalias que o sistema oficial ignorava. Aruan mergulhava nos logs, tentando encontrar mais fragmentos, mais sussurros do fantasma que os precedera. A presença da treva ampliava seus horizontes mentais, forçando-os a pensar em escalas e conceitos que jamais haviam considerado, ao mesmo tempo em que os afundava em uma paranoia compartilhada. Eles eram os únicos dois humanos no universo que realmente sabiam, ou suspeitavam, daquela existência, e essa cumplicidade os isolava do resto do mundo.

A Sala Escura, antes uma presença inerte, começou a adquirir uma personalidade. As flutuações, antes ruído, agora pareciam respirações de uma mente vasta e inescrutável. Os picos de energia, antes aleatórios, agora pareciam sobressaltos, reações a eventos externos ou, talvez, aos seus próprios pensamentos. Eles não eram mais guardas. Eram vigias, testemunhas de algo que despertava lentamente do outro lado do vidro.

Ten (Virada)

Aconteceu no 112º dia de Aruan. Uma terça-feira chuvosa que transformara o mundo exterior numa aquarela cinzenta. Dentro da sala de controle, a única luz vinha dos monitores e a única tempestade era o zumbido constante dos servidores.

Um alarme soou, baixo e insistente. Não era um dos alertas vermelhos de emergência, mas um aviso de manutenção, algo que nunca havia acontecido. Um dos sensores de imagem térmica dentro da Sala Escura havia entrado em modo de diagnóstico, ativando sua própria fonte de luz infravermelha por um nanossegundo para calibragem.

No monitor principal, a escuridão absoluta foi rompida por um único flash. Foi tão rápido que poderia ter sido um erro, uma piscada de olhos. Mas tanto Aruan quanto Anne viram.

Não havia nada lá. Nenhum equipamento, nenhum protótipo de supercondutor. Apenas o oceano de treva, vasto e frio. E, por um instante infinitesimal, no centro exato daquele vácuo, a escuridão se organizou.

Anne rebobinou a gravação do sensor, passando quadro a quadro. E lá estava. Em um único frame, capturado pela luz infravermelha, a névoa negra havia se coagulado, se dobrado sobre si mesma para criar uma forma delicada e complexa. Uma estrutura que se desdobrava em uma geometria impossível, como um floco de neve forjado no coração de uma estrela morta.

— O que é isso? — sussurrou Aruan.

— Parece… — Anne hesitou, aproximando a imagem. A forma era orgânica, inconfundível. — A própria escuridão… Ela fez uma flor.

Antes que pudessem processar o absurdo da imagem, um segundo alarme, este mais agudo, soou. O sensor de composição atmosférica. Um pico massivo e instantâneo de oxigênio, dióxido de carbono e vapor d’água, que desapareceu tão rápido quanto surgiu.

— Respiração — disse Anne, os olhos fixos nos gráficos que despencavam de volta a zero. — Foi o ciclo de vida completo. Em menos de um segundo.

Eles se olharam, e o entendimento passou entre eles sem a necessidade de palavras. O universo lá fora, com sua indiferença fria e suas leis implacáveis, era um lugar hostil. A existência, uma anomalia estatística. A consciência, um acidente passageiro. Mas ali, naquele fragmento de nada, naquele frio absoluto projetado para suprimir e conter, algo havia insistido em existir. A treva não estava apenas viva; ela estava criando, imitando a vida como a conheciam, talvez em resposta à presença deles, uma tentativa de comunicação em uma linguagem que transcendia a fala.

Naquele piscar de olhos, naquela fração de segundo, a própria escuridão havia se tornado vida, vivido e morrido. Contra todas as probabilidades, contra um universo inteiro que conspirava por sua inexistência, a Vida… persistia.

Não era um prisioneiro. Não era um monstro. Era uma alternativa. Uma alternativa à abstração escura da treva absoluta.

O som da porta da sala de controle deslizando os assustou. Era o Sargento Oliveira, o ajudante de Queiroz. Mas seu rosto não tinha a eficiência polida de sempre. Havia uma dureza em seus olhos, e em sua mão, uma pistola com silenciador.

— Os HDs dos sensores. Agora. — disse ele, a voz baixa, o sotaque brasileiro desaparecido, substituído por um inglês com inflexão norte-americana. — Todos eles. Sem alarde.

Aruan e Anne se entreolharam, paralisados. O mundo deles, já expandido pela revelação da Sala Escura, agora se contraía para o pequeno círculo de metal na ponta da arma de Oliveira.

— O que… — começou Aruan.

— Agora! — rosnou o militar.

Ele estava prestes a dar um passo na direção deles quando a porta deslizou novamente. Uma jovem mulher entrou. Vestia-se de forma casual, jeans e uma jaqueta de couro, os longos cabelos escuros e cacheados soltos, mas movia-se com uma economia de gestos que sugeria um perigo contido.

Oliveira virou-se, o rosto contorcido em choque e reconhecimento.

— Você!

Ele disparou. O som do tiro com silenciador foi um baque surdo, quase um soco no ar. Aruan se encolheu, esperando o grito, o sangue. A mulher foi jogada para trás pelo impacto, caindo de forma desajeitada. Por um segundo, Aruan pensou que ela estivesse morta. Mas, em um movimento fluido e assustadoramente rápido, ela se levantou, sem um gemido, o rosto agora uma máscara de fúria fria. Se a bala a atingira, se ela usava um colete, ou se o homem simplesmente errara o tiro à queima-roupa e só a atingiu de raspão, era impossível dizer.

O que se seguiu foi uma demonstração de violência contida e letal. Antes que Oliveira pudesse disparar de novo, ela já estava sobre ele. Sua mão se fechou sobre o pulso do agente, não para esmagar, mais para redirecionar, usando a força dele contra si mesmo num movimento de alavanca que fez o osso estalar e a arma cair no chão com um baque metálico.

You bitch! — ele vociferou, atacando com a outra mão. Era um lutador exímio, seus movimentos eram rápidos e brutais. Mas a mulher era mais eficiente. Ela não absorvia os golpes; ela os desviava com uma precisão milimétrica, cada bloqueio se transformando em um contra-ataque. Seus golpes eram aplicados com uma técnica impecável e um peso que parecia desproporcional ao seu tamanho. Um golpe no plexo solar fez Oliveira dobrar-se, outro no lado do pescoço o desorientou. O último, um golpe com a base da palma sob o queixo, não o arremessou, mas o fez apagar, o corpo desabando como um boneco de pano contra a base da parede de vidro. O vidro maciço nem tremeu. Oliveira deslizou para o chão, inconsciente.

A mulher primeiro olhou para o oponente derrotado e suspirou. Parecia triste. Então se voltou e ficou olhando para a treva na Sala Escura. Ficou, talvez, um minuto assim, observando a escuridão. De repente, ela murmurou algo em um tom delicado, mas nem Anne, nem Aruan entenderam as palavras. Depois, a mulher virou-se para Aruan e Anne, que estavam encolhidos contra o console. O terror nos olhos deles era palpável. Ela suavizou a expressão, um esforço visível para parecer menos ameaçadora.

— Agente federal — disse ela, a voz calma, mas com um timbre de autoridade inquestionável. — Estávamos monitorando. Eu ia intervir. Aruan, pegue o telefone de linha direta e assim que o outro lado atender, diga apenas protocolo C7. Depois desligue.

O homem obedeceu sem questionar. Assim que o telefone voltou ao gancho, a agente federal olhou novamente para o corpo caído de Oliveira, depois para os monitores, e por fim para os dois operadores. Seus olhos agora pareciam perfurá-los.

— As câmeras de segurança desta área ficarão offline pelos próximos dez minutos. Quando voltarem, o sargento terá sofrido um surto psicótico e precisou ser removido para avaliação. Ninguém mais entrou aqui. Ninguém mais saiu. Sinto muito, mas vocês não são os primeiros a vigiar algo que não entendem. Façam o que eu disse e talvez não paguem o pior preço por tentarem compreender o que estão vigiando. Entendido?

Aruan e Anne apenas conseguiram assentir. A mulher agarrou o colarinho do agente desacordado e o arrastou para fora da sala com uma certa facilidade que, dado o tamanho do homem, indicava que ela era mais forte do que parecia. A porta deslizou, fechando-se atrás dela, e o silêncio voltou, agora preenchido pelo zumbido dos servidores e o som de dois corações batendo descontroladamente.

Ketsu (Conclusão)

O telefone de linha direta tocou, estridente, quebrando o silêncio! A voz de Queiroz, tensa, saiu pelo viva-voz.

— Operadores, relatem. Tivemos um alerta de diagnóstico no sistema de imagem. O que vocês viram?

Aruan olhou para Anne. O peso de décadas de conformidade, de baixar a cabeça e seguir ordens, pesava sobre seus ombros. Mas o que ele vira naquele monitor, e naqueles últimos minutos, havia reconfigurado sua alma. Ele não era mais apenas um técnico com dívidas. Era uma testemunha. E a metáfora de sua posição ficou clara: ele era a humanidade, pequena e confusa, diante do desconhecido, com o poder de tentar compreender ou de tentar destruir.

Anne estendeu a mão e, com um toque firme, desligou o viva-voz. O silêncio voltou, mais denso do que antes.

— O que vamos dizer a ele? — perguntou Aruan, a voz pouco mais que um murmúrio.

— A verdade — respondeu Anne, mas não a verdade que Queiroz esperava. — Vamos dizer que foi um erro no sensor. Um pico de energia. Nada.

Era uma mentira. Muita coisa aconteceu! Mas também era a decisão mais honesta que Aruan já tomara em sua vida. Proteger aquele segredo, aquela beleza frágil e teimosa, tornou-se, naquele instante, o único propósito que importava.

Havia, claro, a misteriosa e aparentemente muito perigosa agente federal e a vontade de nunca mais cruzar o caminho dela. Mas o milagre vivo em meio a mais fria escuridão, que Aruan e Anne viram acontecer, causava um senso de reverência que eclipsava até o medo da violência que testemunharam.

Eles não sabiam o que era a entidade na Sala Escura. Não sabiam de onde viera ou o que queria. Sua inteligência e motivações permaneciam um mistério absoluto. Mas sabiam de uma coisa: ela estava viva. E em um universo que parecia tão determinado a acabar, qualquer coisa que escolhesse, com tanto esforço, começar, merecia uma chance.

Aruan virou-se para o seu console, os dedos pairando sobre o teclado, ainda trêmulos. Ele abriu e fechou os punhos, buscando controle, e começou a digitar, criando um novo log, um novo diário. Não um de medo, mas de admiração, confusão e uma obsessão compartilhada. Ele não sabia se viveria para ver o próximo florescer, ou se a Marinha descobriria sua insubordinação silenciosa, ou se outra pessoa invadiria aquela sala e os mataria. Mas, pela primeira vez em muito tempo, ele não sentia o peso do seu passado ou a ansiedade de seu futuro. Sentia apenas a imensidão do presente, daquele momento compartilhado com Anne, como guardiões de uma pequena e teimosa flor no coração da noite.

E no negrume do outro lado do vidro, invisível e silenciosa, a escuridão esperava, pacientemente, para florescer de novo.

Por Wagner RMS.

Referências: [ Agente Federal | C7 | Escuridão ]

A Sala Escura
❤️ Espalhe nosso Amor por boas histórias! ❤️

Deixe um comentário

Rolar para o topo