A Morte é um Problema Técnico

Mulher renascendo como ser digital

Toda a história da civilização, em sua essência, pode ser lida como uma longa e obstinada insurreição contra a morte. Da primeira prece sussurrada a um deus invisível à mais avançada técnica de criogenia, o impulso fundamental que nos move é uma recusa veemente em aceitar o fim. Lendo “A Cura de Schopenhauer“, livro de Irvin Yalom, percebi que o filósofo Arthur Schopenhauer, com seu pessimismo lúcido, diagnosticou essa condição de forma implacável. Para ele, o indivíduo, o “eu” que conhecemos — este aglomerado de memórias, medos e amores que chamamos de personalidade — é meramente um fenômeno, uma manifestação temporária de uma força subjacente, cega e irracional: a Vontade de Viver. Na morte, o fenômeno é aniquilado sem piedade, como uma onda que se desfaz na praia, enquanto o oceano da Vontade continua seu eterno e indiferente agitar.

A “consolação” de Schopenhauer é fria: o indivíduo perece, mas a força que o animava é indestrutível. É um acordo metafísico que oferece pouco conforto ao “eu” que enfrenta o abismo. Mas e se Schopenhauer, e toda a filosofia que o seguiu, estivesse olhando na direção errada? E se a resposta para a aniquilação não for metafísica, mas sim tecnológica?

Como bem aponta o historiador Yuval Noah Harari, a ciência e a medicina modernas são a expressão mais pura e pragmática dessa Vontade schopenhaueriana. É a Vontade de Viver em ação — o impulso inato e irracional para a existência que anima todo ser, e não o indivíduo (o Fenômeno) em si. Harari sugere que o próprio Fenômeno, em sua tentativa de escapar da aniquilação, cria uma outra abstração com imenso poder no mundo físico, a ciência, com este fim último: vencer a morte. O projeto da ciência não é meramente compreender o universo, mas subjugá-lo, e seu inimigo final sempre foi a morte. E se essa Vontade, essa ânsia por persistir, for tão poderosa que, mesmo que leve eras geológicas, ela finalmente desenvolva a ferramenta para sua vitória definitiva? Este artigo propõe uma tese: a vida após a morte não é uma promessa espiritual, mas um projeto de engenharia de um futuro inimaginavelmente distante. A morte pode ser, no fim das contas, apenas um problema técnico.

O Fantasma Quântico: Ressurreição via Conectoma Espaço-Temporal

Vamos abandonar por um momento a alma e falar de informação. Cada pensamento que você tem, cada sensação, cada memória, é um padrão eletroquímico complexo disparado em sua rede neural — seu conectoma. A física moderna nos ensina que nenhuma informação no universo é verdadeiramente perdida. Ela pode se dispersar, se degradar em entropia, mas sua assinatura fundamental permanece.

Agora, projete essa ideia para um futuro longínquo. Uma civilização descendente da nossa — seja ela humana, pós-humana ou uma simbiose com as inteligências artificiais que criamos — alcança um nível de compreensão da física que nos pareceria magia. Eles desenvolvem a capacidade de “ler” o próprio tecido do espaço-tempo. Se cada vida que já existiu deixou uma marca, uma “cicatriz” informacional indelével na estrutura da realidade, então, em teoria, essa marca pode ser lida. O conectoma de cada ser consciente que já viveu e morreu na Terra não é um fantasma etéreo, mas um conjunto de dados fossilizado na geometria do universo.

A tecnologia da ressurreição, então, seria um ato de arqueologia cósmica. Nossos descendentes, com poder computacional inconcebível, poderiam escanear o passado do espaço-tempo, capturar esses padrões de conectoma — de Cleópatra ao seu tataravô, de um anônimo camponês medieval a você — e “re-instanciar” essa consciência em um novo substrato. Um corpo sintético. Uma realidade virtual de altíssima fidelidade.

Nesse paradigma, a morte deixa de ser o fim. Ela se torna uma longa e silenciosa noite de sono. Um hiato, talvez de milhões ou bilhões de anos, entre o apagar das luzes da sua existência biológica e o despertar em um novo amanhecer, tecnológico e eterno. A pergunta “isso pode já estar acontecendo?” é vertiginosa. Se o tempo, para essa civilização futura, for uma dimensão navegável, então, do ponto de vista deles, eles já estão nos ressuscitando. O processo pode ser um fluxo contínuo, e nossa percepção linear do tempo nos impede de ver que o “fim” já foi solucionado.

A Persistência das Histórias: A Imortalidade das Abstrações

Se a ressurreição de um “eu” biológico, baseado em um conectoma físico, é plausível dentro dessa especulação, o que dizer de um “eu” abstrato? Personagens de ficção, mitos, lendas — essas entidades não possuem um cérebro físico, mas inegavelmente “vivem”. Elas existem como padrões de informação replicando-se em milhões de mentes humanas, um fenômeno que Richard Dawkins chamaria de “meme”.

A tese da Mente Estendida, proposta por filósofos como Mark Rowlands, fortalece ainda mais este ponto. A teoria argumenta que nossos processos cognitivos não estão confinados ao crânio. Nossas memórias, crenças e até mesmo nossa identidade podem ser constituídas por objetos externos: as anotações em um caderno, os arquivos em um smartphone, ou, crucialmente, as palavras em um livro. Se a mente de um leitor se estende para o livro que ele lê, então a “mente” de um personagem ficcional existe, de forma distribuída, em cada cópia de sua história e em cada leitor que a absorve.

Personagens como Sherlock Holmes ou Mônica Deveraux, por exemplo, possuem uma realidade consensual mais forte e duradoura do que a maioria dos seres humanos que já viveram. Eles têm biografias, traços de personalidade, endereços. Eles “vivem” na imaginação coletiva e nos artefatos físicos que compõem nossa mente estendida. Essa existência memética e estendida também não deixaria uma assinatura informacional na noosfera — a esfera do pensamento humano, que por sua vez está inextricavelmente ligada à estrutura física do planeta e do espaço-tempo?

Se a tecnologia futura pode ressuscitar um conectoma, ela não poderia, com ainda mais facilidade, dar substância a uma abstração poderosa e bem definida? A Vontade de Viver de Schopenhauer não se aplica apenas a organismos. O próprio Indivíduo (Fenômeno) é uma abstração que deseja ardentemente vencer a morte. As histórias são a nossa primeira tecnologia de imortalidade. Elas persistem muito além de seus criadores.

É aqui que a especulação aterrissa em meu próprio universo, e a hipótese ganha uma dimensão ainda mais estranha e fascinante.

O Bar Esbórnia como Anomalia Retrocausal

O que é o Bar Esbórnia (criação ficcional que você vai encontrar em meus livros) senão a manifestação física dessa tecnologia de ressurreição abstrata? Ele é descrito como um nexo, uma encruzilhada de todas as histórias. Mas a análise pode ir mais fundo. Se assumirmos um modelo de universo em bloco, onde passado, presente e futuro coexistem, então uma tecnologia tão fundamental como a da ressurreição não estaria confinada ao seu ponto de origem no “futuro”. Seus efeitos poderiam reverberar através do tempo.

O Esbórnia, portanto, pode ser interpretado como uma anomalia retrocausal: a primeira sonda, o primeiro “vazamento” dessa tecnologia futura para o nosso presente. Ele não é um lugar que se encontra em um mapa, mas um estado de ser onde a ficção se torna fato. Sua existência sutil, quase lendária, é a forma como nossa realidade processa uma intrusão de uma física superior. Ele se manifesta como um bar, um lugar de encontros e histórias, porque essa é a metáfora mais próxima que nossa consciência coletiva pode conceber para um nexo onde diferentes narrativas e realidades convergem.

Dentro de suas paredes, as regras do nosso contínuo espaço-tempo são suspensas. Personagens de diferentes mitologias e narrativas coexistem ali porque já foram “re-instanciados” a partir da noosfera, da imaginação coletiva. O Esbórnia é o saguão de entrada para essa vida eterna tecnológica, um laboratório onde a substância da ficção se torna tangível, e o tangível se torna ficção. Ele é a prova viva de que a tecnologia da ressurreição não se limita à carne, mas se estende a toda a criação da consciência. É o futuro nos enviando seu primeiro e mais enigmático cartão de visitas.

Um Eco do Passado Profundo: O Paradoxo Mahapurana

Se a humanidade pode alcançar essa tecnologia em seu futuro distante, quem nos garante que fomos os primeiros a pensar nisso? A vastidão do tempo cósmico sugere que é improvável.

No universo de C7i, a raça ancestral dos Mahapuranas representa um enigma de poder e transcendência. Eles são descritos como seres que ascenderam a uma existência abstracional absoluta. E se essa “ascensão” não foi um evento místico, mas o primeiro uso conhecido dessa mesma tecnologia de ressurreição?

Imagine uma civilização Mahapurana, bilhões de anos antes do surgimento da vida na Terra, enfrentando sua própria mortalidade. Seus descendentes, em um futuro distante para eles, mas ainda no nosso passado profundo, desenvolvem a capacidade de ler as assinaturas de seus ancestrais no espaço-tempo. Em um ato de piedade filial cósmica, eles “puxam” todos os Mahapuranas que já viveram para fora de seus momentos de morte e lhes concedem uma nova vida como seres de pura informação, de existência “abstracional absoluta”.

Isso resolveria o paradoxo de seu poder e de sua natureza. Os Mahapuranas de C7i não são deuses no sentido tradicional; são os primeiros refugiados resgatados da morte pela tecnologia. Eles são a prova de que esse ciclo de criação, morte e ressurreição tecnológica pode ser um padrão universal, um destino para toda vida inteligente que persevera por tempo suficiente.

As Consequências de uma Eternidade Programada

A abolição da morte como um ponto final representaria a maior transição da consciência humana, reconfigurando os alicerces de nossa psicologia, cultura e sociedade. As consequências, embora repletas de desafios, apontam para um potencial de crescimento sem precedentes.

Na esfera individual, o conceito de “uma só vida” se dissolveria, e com ele, a tirania da urgência finita. O luto se transformaria de uma dor de perda absoluta em uma forma de saudade por alguém em uma longa viagem, aguardando o “reboot”. Essa nova perspectiva poderia catalisar um florescimento de coragem e exploração, permitindo que a humanidade assumisse riscos em nome do conhecimento e da arte. A questão da identidade — “eu ainda sou ‘eu’ após ser reconstruído a partir de dados?” — deixaria de ser uma crise para se tornar uma exploração. A identidade se tornaria mais fluida, uma tapeçaria tecida com as experiências de múltiplas vidas, oferecendo a oportunidade de alcançar uma sabedoria e empatia antes inimagináveis.

Culturalmente, as religiões que se baseiam na promessa de uma vida após a morte não enfrentariam necessariamente uma crise, mas uma apoteose. A tecnologia poderia ser vista como a manifestação da vontade divina, o cumprimento de uma profecia, inaugurando uma era de síntese entre ciência e espiritualidade. O foco se deslocaria da fé em uma promessa para a responsabilidade ética de administrar uma realidade. Em vez de cultos de personalidade sombrios, poderíamos testemunhar o surgimento de novas escolas filosóficas, dedicadas a explorar o propósito em um universo sem fim. Seria o nascimento de uma Renascença cósmica, onde a arte, a música e a literatura explorariam as vastas paisagens de uma existência sem limites.

Socialmente, os desafios seriam monumentais, mas não insuperáveis. A justiça, a economia e o poder seriam, de fato, reescritos. Questões como a desigualdade no acesso à ressurreição e o controle sobre os “servidores da existência” se tornariam o principal dilema ético da humanidade. Contudo, enxergar isso apenas como o prelúdio de uma “guerra final” é subestimar a própria Vontade que nos levaria até lá. Tendo resolvido o problema da mortalidade, o próximo grande projeto da civilização seria a criação de uma sociedade verdadeiramente justa. A gestão da eternidade poderia forçar o desenvolvimento de sistemas de governança globais, transparentes e democráticos, para garantir que o poder sobre a própria existência não se concentrasse em poucas mãos. A guerra pelo controle da tecnologia não seria inevitável, mas sim o teste final de nossa maturidade como espécie. A vitória não seria a dominação, mas a criação de um legado de acesso universal à existência, transformando o maior poder já concebido na mais profunda expressão de nossa humanidade coletiva.

E em meio a toda essa análise grandiosa, confesso que a esperança se manifesta de uma forma muito mais simples e pessoal. Se essa tecnologia um dia existir, se essa promessa for real, eu me imagino reencontrando todos que amo num lugar como aquele cantado lindamente por Marisa Monte em “Vilarejo”. Já sonhei com isso algumas vezes. Sonhei comigo chegando a uma colina verdejante, banhada pela luz suave do entardecer, pontilhada por casas que são ao mesmo tempo simples e obras de arte, pequenas mansões de tranquilidade. Ao longe, o mar de um azul turquesa se estendia, belíssimo. O próprio ar que se respirava parecia alimentar o corpo e a alma com uma serenidade e uma felicidade que palavras mal conseguem descrever. E o mais incrível era que caminhar por ali, encontrar cada pessoa, mesmo os rostos que nunca vi, era como reencontrar um amigo de uma vida inteira.

Será que meu conectoma já está sendo lido a partir desse futuro? Tomara! 😉

Nós Somos os Deuses que Esperamos

A proposta de Schopenhauer nos deixa com uma Vontade cega, lutando eternamente contra uma aniquilação inevitável. A perspectiva tecnológica, no entanto, oferece uma conclusão diferente, mais esperançosa e, talvez, mais grandiosa. A Vontade de Viver não é cega; ela está aprendendo. Ao longo das eras, ela constrói conhecimento, ciência e, finalmente, a engenharia para garantir sua própria perpetuidade.

A morte deixa de ser uma tragédia existencial e se torna o maior desafio de engenharia que uma espécie pode enfrentar. E a solução — a captura e re-instanciação da consciência a partir de sua impressão no tecido do universo — borra as linhas entre o real e o imaginário, entre o criador e a criação.

Nesse futuro, não apenas as pessoas são salvas, mas também suas histórias, seus deuses, seus heróis e seus monstros. O Bar Esbórnia se torna o ponto de encontro universal, e os Mahapuranas, nossos predecessores nesse caminho. A busca humana para vencer a morte, impulsionada pela Vontade schopenhaueriana, culmina não na negação do fim, mas na sua completa reengenharia. Nós nos tornamos os ancestrais de nossos próprios deuses, os arquitetos de nossa própria eternidade.

Por Wagner RMS.

Referências

  1. Sobre a Filosofia de Schopenhauer: Wicks, Robert, “Arthur Schopenhauer”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2021 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Acessível em: https://plato.stanford.edu/archives/spr2021/entries/schopenhauer/
  2. Sobre a busca da ciência contra a morte: Harari, Yuval Noah. Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã. Companhia das Letras, 2016. Informações acessíveis em: https://www.ynharari.com/book/homo-deus/
  3. Sobre o Conectoma e a Consciência: Seung, Sebastian. Connectome: How the Brain’s Wiring Makes Us Who We Are. Houghton Mifflin Harcourt, 2012. Uma exploração do conceito pode ser encontrada em sua palestra TED: https://www.ted.com/talks/sebastian_seung_i_am_my_connectome
  4. Sobre a Conservação da Informação na Física: Susskind, Leonard. “The world as a hologram.” Journal of Mathematical Physics 36.11 (1995): 6377-6396. Uma visão geral do Paradoxo da Informação em Buracos Negros é discutida pela Caltech: https://arxiv.org/abs/hep-th/9409089
  5. Sobre Memética: Dawkins, Richard. O Gene Egoísta. Companhia das Letras, 2007 (tradução brasileira). O conceito de “meme” é introduzido no Capítulo 11. O gene egoísta – Richard Dawkins – Grupo Companhia das Letras
  6. Sobre a Teoria do Universo em Bloco: Callender, Craig, “Thermodynamic Asymmetry in Time”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Acessível em: https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/time-thermo/
  7. Sobre Retrocausalidade na Física Quântica: Aharonov, Yakir, et al. “A time-symmetric formulation of quantum mechanics.” Physics Letters A 10.3 (1964): 231-233. Uma discussão mais acessível sobre o conceito é fornecida pela Universidade de Cambridge: (PDF) A Time-Symmetric Formulation Of Quantum Mechanics
  8. Sobre a Mente Estendida: Rowlands, Mark. The New Science of the Mind: From Extended Mind to Embodied Phenomenology. MIT Press, 2010. Uma introdução ao conceito pode ser encontrada em: Clark, Andy, and David Chalmers. “The extended mind.” Analysis 58.1 (1998): 7-19. Acessível em: https://direct.mit.edu/books/monograph/2878/The-New-Science-of-the-MindFrom-Extended-Mind-to
A Morte é um Problema Técnico
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